Opinião

Legislação do pré-sal: dez motivos para refletir sobre a segurança do novo modelo

Por Cláudio Araújo Pinho

Por Redação

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As recentes Leis 12.276/10 e 12.304/10, sobre a capitalização da Petrobras e sobre a criação da Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), respectivamente, trazem algumas reflexões com consequências jurídicas ainda imprevisíveis.

Vejamos cada uma dessas reflexões e suas possíveis consequências jurídicas:

• Melhores práticas da indústria do petróleo, interpretação legal e análise contratual
Dois são os pilares que definiram a legislação e os tipos de contrato no setor petrolífero. O primeiro foi o sentimento de que o petróleo é um bem estratégico; o segundo, que a formalização dos contratos do petróleo foi baseada na plena liberdade contratual, de origem anglo-saxônica.

Nos países da chamada “common law”, a liberdade de contratar é mais ampla do que em países da “civil law”, tais como o Brasil. Aqui temos de olhar a Constituição Federal, o Código Civil e demais legislação antes de iniciarmos a redação do contrato. A regra é que a vontade das partes de contratar está no espaço não regulado pela lei. O que propõe a nova legislação é tratar de um bem público (petróleo), que passará a ser em parte fiscalizado pelo poder público (ANP) e, por outro lado, gerenciado por uma empresa pública (PPSA), executado em consórcios montados, nos quais é garantida a participação de uma empresa cujo capital majoritário é público (Petrobras).

Diante de tantos aspectos públicos interrelacionados no novo marco regulatório, é fundamental que a interpretação constitucional e legal seja delimitada antes do contrato, pois a partilha da produção, conforme definida em lei, é opção política, indicada pelo Poder Executivo e trabalhada pelo Poder Legislativo, e o Poder Judiciário não tem como se imiscuir.

O Poder Judiciário poderá ser chamado, sim, para dirimir as questões que surjam neste prévio e necessário arcabouço interpretativo. Nesse sentido, a expressão “melhores práticas da indústria do petróleo” aparece em várias passagens no marco regulatório, mas ela não poderá ser sobreposta aos valores jurídicos descritos na Constituição Federal e na própria lei.

• Possibilidade de dispensa de licitação para contratação e exploração do petróleo
A ideia básica do novo modelo é a adoção do contrato de partilha. Para tanto, baseado na premissa internacional, resolveu criar uma estatal somente para figurar no contrato (PPSA) e ceder onerosamente o direito de exploração de 5 bilhões de barris de petróleo para a Petrobras. A questão jurídica que se coloca é se a União poderia ceder o direito de exploração dos 5 bilhões de barris, sem o devido processo licitatório, para a Petrobras, sociedade de economia mista que, por força da Constituição Federal, segue o regime jurídico das empresas privadas.

Para desalento dos que entendem como possível a contratação da Petrobras sem o devido processo licitatório, o Supremo Tribunal Federal (STF), quando analisou a constitucionalidade da Lei 9.478/97 e as implicações da Emenda Constitucional 9/95, que flexibilizou o monopólio da extração do petróleo no Brasil, disse, com todas as letras, que a Petrobras, a partir daquela mudança constitucional, somente poderia participar de qualquer atividade na área petrolífera mediante regular processo licitatório.

A contratação direta da Petrobras só era possível porque antes de 1995 ela estava expressamente protegida pelo texto constitucional. O questionamento que se coloca é saber se a lei pode determinar a contratação direta ou se é necessário que ela volte a ter a proteção constitucional.

• Do conceito de autorização no Direito
A palavra “autorização” tem um significado muito específico para o direito administrativo. Autorização é um ato da Administração de caráter unilateral, discricionário e precário, que demonstra a liberalidade de autorizar, podendo a Administração revogar a autorização a qualquer tempo, sem infração contratual. Apenas por esta singela definição já é possível identificar que não estamos tratando de uma autorização.

O que se faz, na verdade, é pegar a propriedade de um bem público (petróleo) e ceder a um sujeito de direito que se equipara ao particular. Pelo mesmo fundamento, devemos imaginar se é possível essa transferência de bem público com a criação de uma lei, quando a Constituição Federal proíbe expressamente essa prática. O próprio STF já observou isso, ao descrever na Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) 3.273 qual o regime jurídico para o segmento do petróleo, entendendo que não é o caso de autorização.

• Capitalização da Petrobras e direito dos minoritários
A Lei 12.276/10, que traz as linhas mestras da capitalização da Petrobras, prevê que o governo, acionista controlador da companhia, não entrará com nenhum centavo em dinheiro, integralizando o capital com títulos públicos (art. 9º). Ao que parece, a chamada de capital vai ficar para os minoritários. Todavia, um aspecto jurídico ficou esquecido ou não veio esclarecido na elaboração da lei: o direito de preferência dos acionistas minoritários integralizarem o capital em igualdade de condições. Essa norma constante no art. 171 da Lei das Sociedades Anônimas poderá atravancar a capitalização, caso algum acionista minoritário queira ingressar na Justiça para fazer valer seu direito de aportar o capital com títulos públicos, tal como será feito pelo acionista majoritário.

Isenção de responsabilidade do Estado no novo marco regulatório versus responsabilidade objetiva
Alguns especialistas na área do petróleo questionaram que o modelo de partilha não precisaria necessariamente de uma empresa autônoma para a contratação. Criada a PPSA por força da Lei 12.304/10, ela foi constituída como empresa pública, sob o regime jurídico das empresas privadas (art. 3º). Ela atua sem nenhum privilégio de ser uma empresa de capital 100% governamental. Ao agir como empresa privada por determinação legal, é questionável se a lei pode excluir sua responsabilidade civil ou penal. Esse é o comando do §2º do art. 8º do Projeto de Lei 5.940/2009, que ainda está tramitando na Câmara dos Deputados.

• Produtores independentes do petróleo
Entre as oportunidades perdidas na aprovação das leis do marco regulatório do pré-sal temos o veto ao §4º da Lei 12.276/10, que previa a possibilidade de a Petrobras pagar parte da cessão onerosa com campos marginais. O objetivo desta medida era fomentar o mercado dos produtores independentes, que poderiam adquirir novamente esses campos em futuros leilões da ANP.

• Princípios da ordem econômica e reserva de mercado
Pela legislação aprovada, duas empresas que seguem o regime jurídico de empresas privadas (Petrobras e PPSA) foram agraciadas com gigantesca reserva de mercado, haja vista que a PPSA sempre constará como contratante e na outra parte entrará um consórcio no qual a Petrobras terá participação mínima de 30%. A reserva de mercado somente pode existir por proteção constitucional.

Após a Emenda Constitucional 9/95, que retirou da Petrobras o monopólio da atividade de exploração, a regra que ficou valendo é a enunciada no art. 170 da Constituição Federal, que determina a economia de mercado, com base na livre iniciativa. Quanto à necessidade da existência de uma emenda constitucional para a garantia da reserva de mercado a essas duas empresas, não há discordância na melhor doutrina do direito constitucional.

O questionamento consiste em saber se pode haver uma emenda constitucional que limite os princípios constitucionais na livre concorrência ou mesmo se essa emenda seria inconstitucional. Alguns doutrinadores entendem que é possível a limitação da livre concorrência porquanto o princípio não é uma cláusula pétrea. Outros entendem que não.

• Questões ambientais e direito do petróleo
O acordo político celebrado quando os projetos estavam no Senado Federal determinou que os projetos que previam a capitalização da Petrobras e a criação da PPSA seriam aprovados sem emendas, e, em contrapartida, o terceiro projeto que versa sobre a modificação da distribuição dos royalties e criação do Fundo Social ficaria para discussão e votação após a eleição presidencial. O primeiro passo seria a retirada do regime de urgência dos três projetos. Foi feito. O segundo seria a aprovação dos textos dos dois projetos sem nenhuma modificação, o que evitaria a necessidade de nova votação na Câmara dos Deputados. Também foi feito. Por fim, os projetos foram promulgados, mas a Lei 12.276/10 teve um veto cujo motivo principal foi a celeridade.

Oportunidades preciosas foram perdidas ou desperdiçadas em prol dessa velocidade. Entre as oportunidades perdidas, a questão ambiental tem destaque. Quando, em abril, a BP se deparou com um problema operacional no Golfo do México, nenhuma previsão ambiental ocupava as discussões do pré-sal. O art. 2º da Lei 12.276/10, que estabelece quais os critérios para a materialização do contrato de partilha, prevê uma série de requisitos, nada falando da área ambiental. No dia 30 de março, a então senadora Marina Silva apresentou uma emenda com várias modificações ao texto, todas rejeitadas em prol da celeridade.

• Polêmica sobre tratamento dos royalties no novo marco regulatório
Tudo leva a crer que a discussão que envolve os royalties do petróleo está fadada a ser debatida no STF. Qualquer que seja o modelo aprovado, uma medida judicial na mais alta corte do país trará insegurança e provocará uma batalha de liminares e demandas judiciais para que o dinheiro arrecadado seja repassado dessa ou daquela forma. Caso não se consiga um consenso, todos sairão perdendo.

• O papel da ANP no novo marco regulatório
Com o novo modelo regulatório, a ANP se enfraquece. O instituto jurídico estudado na atividade regulatória, chamado teoria da captura, alerta para a possibilidade de o poder público ou o poder econômico privado se infiltrar de tal sorte em uma agência reguladora ao ponto de ela deixar de atuar com a independência que dela se espera.

Essa sempre foi a preocupação. O novo marco regulatório do pré-sal fez mais do que isso: relegou a ANP a um papel coadjuvante, de departamento da Administração. Com o pré-sal passando a ser o maior interesse do governo, seu papel, além de secundário, é incerto quanto ao futuro.

Ao contrário do que possa parecer, a visão aqui exposta é otimista. O Executivo e o Legislativo podem e devem corrigir as falhas e distorções em tempo hábil. Caso isso não ocorra, estará lá o Poder Judiciário a responder aos anseios da sociedade e, sobretudo, a interpretar o que diz a Constituição Federal.

Cláudio Araújo Pinho é advogado, mestre em Direito Econômico pela UFMG, vice-Presidente da Comissão de Direito Constitucional da Federação Interamericana de Advogados, membro da Comissão de Direito Constitucional e da Comissão de Petróleo, Gás e Biocombustíveis do Instituto dos Advogados Brasileiros e autor do livro Pré-sal: História, doutrina e comentários às leis

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