Opinião

A Lei 14.015 e a Resolução 1.000 da Aneel - evolução e adequação dos direitos do consumidor

Apesar da importância e contexto histórico regulatório, legal, doutrinário e jurisprudencial, feitos os esclarecimentos acima e voltando ao foco principal da ideia e do tem deste artigo, as relações com o consumidor evoluiriam ao longo de décadas

Por Fábio Amorim

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Quando ingressei no setor elétrico no final dos anos 80, vigorava a Portaria nº 222/87, do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), sucedido em 1996, pela atual Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), como disposto na Lei nº 9.427/1996.

A Lei nº 8.078/1990, o famoso e importante Código de Defesa do Consumidor (CDC), passa a vigorar em março de 1991. Vivíamos uma realidade bem diferente da atual, e com o CDC e Aneel, o setor elétrico se aproxima e dialoga com o consumidor, mesmo em casos difíceis, coma suspensão de serviço por falta de pagamento.

Importante demonstrar este histórico, bem como acrescentar que as Condições Gerais de Fornecimento de Energia Elétrica foram editadas pela 1ª vez em 27 de março de 1957, naquela época somente com três artigos, por meio da Portaria do Ministério da Agricultura nº 345.

Foi reeditada por meio da Portaria do Departamento de Nacional de Proteção Mineral n° 114, em 14 de maio de 1963, da Portaria do Ministério de Minas e Energia nº 670, em 8 de outubro de 1968, da Portaria do Ministério de Minas e Energia nº 378, em 26 de março de 1975, das Portaria do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica números 95, em 17 de novembro de 1981, 222, em 22 de dezembro de 1987,  466, em 12 de novembro de 1997, e já com a Aneel  as resoluções 456, em 29 de novembro de 2000, 414, em 09 de setembro de 2010 e 1000, em 07 de dezembro de 2021 e republicada em 21 de janeiro de 2022.

Portanto, mais de seis décadas de portarias e resoluções que disciplinaram sobre a relação concessionária e consumidor. Chama a atenção o fato da 1ª portaria possuía três artigos e a atual e vigente Resolução 1.000 possui em seu denso texto mais de 170 páginas, modificando 61 normas e revogando dezenas.

Disposta a trajetória acima, era comum nos idos da década de 90 que as suspensões de serviço, por inadimplemento, ocorressem a qualquer dia, mesmo as sextas e final de semana. Lembro que, novato de setor, me revoltava com o corte no final de semana, a uma porque deixávamos de vender nossa energia e a duas porque, como advogado, sabia que não seria nenhuma surpresa recebermos uma ação na segunda, pela manhã, com uma liminar determinando a religação do serviço. Mesmo que entendesse as razões da empresa, este corte me soava antipático, prejudicial financeiramente e ainda aumentaria o estoque de ações judiciais propostas em face da empresa.

Que se registre, que não estou aqui a defender o que dispõe o artigo 22 do CDC, até porque sou totalmente contrário à sua interpretação e fiz parte de um seleto grupo de advogados do setor que lutou pelo entendimento correto sobre a possibilidade de suspensão de serviço. Aqui rendo as minhas homenagens aos mestres José Calasans Junior, Antonio Lazaro da Silva e do saudoso Braz Pesce Russo. Que mestres! Quanta generosidade e ensinamentos.

Mas sobre o artigo acima citado, lembro que este artigo dispõe que ...”as concessionárias, permissionárias ou sob qualquer forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”.

Até porque não seria crível que uma lei garantisse mesmo aos inadimplentes um serviço gratuito. Se assim fosse, melhor seria usufruir do serviço sem, em momento algum, efetuar o pagamento, posto que, sob este entender, o artigo 22 do CDC garantiria a continuidade do serviço em qualquer hipótese.

A leitura do dispositivo de forma isolada, sem uma interpretação sistemática, levaria a absurda conclusão de que as empresas responsáveis pelos serviços públicos têm o dever contínuo e incessante de servir o cliente, independentemente de qualquer outro fator.

Oportuna se faz a lição de Zelmo Denari[1], um dos autores do Anteprojeto do CDC, que esclarece sobre a adequada interpretação do artigo 22 do referido Diploma Legal, veja-se:

“A nosso aviso, essa exigência do artigo 22 não pode ser subentendida: os serviços essenciais devem ser contínuos no sentido de que não podem deixar de ser afastados a todos os usuários, vale dizer, prestados no interesse coletivo. Ao revés, quando estiverem em causa interesses individuais, de determinado usuário, a oferta do serviço pode sofrer solução de continuidade, se não forem absorvidas as normas administrativas que regem a espécie. Tratando-se, por exemplo, de serviços prestado sob o regime de remuneração tarifária ou tributária, o inadimplemento pode determinar o corte do fornecimento do produto ou do serviço. A gratuidade não se presume e o poder público não pode ser compelido a prestar serviços públicos ininterruptos, se o usuário deixa de fazer suas obrigações relativas ao pagamento”.   (grifamos)    

Do contrário, dever-se-ia atender a uma multidão de hipossuficientes, deserdados da sorte, desempregados, famintos, explorados, descamisados, etc., o que inviabilizaria a própria fornecedora dos serviços, eis que não prevista, na Constituição Federal ou Estadual, a gratuidade do fornecimento.

Impondo a legislação deveres à concessionária - especialmente o de prestar serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários -, nos termos da Lei, das normas pertinentes e dos contratos de concessão e de fornecimento, também lhe outorga direitos, dentre os quais o de suspender o serviço a unidade consumidora inadimplente, sem que isso represente constrangimento ou ameaça, providência esta que tem embasamento legal no artigo 6º, § 3º, inciso II da Lei nº 8.987, de 13/02/1995 (Lei de Concessões), que prescreve, ipsis litteris:

Art. 6º. Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

    • 3º. Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

 

(...) II - por inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade.” (grifamos).

A suspensão do serviço a unidade do consumidor inadimplente não consubstancia penalidade, mas antes, pelo contrário, mecanismo voltado a assegurar a economicidade da prestação do serviço concedido, com reflexos marcantes no equilíbrio econômico e financeiro da concessão. Seria, no mínimo, incoerente fornecer um serviço sem que seu fornecedor seja devidamente remunerado para a sua execução.

Da mesma forma, o inciso II, do § 3º, do artigo 6º, da Lei nº 8.987/95, também não contraria o inciso LV, do artigo 5o, da Constituição Federal, que admite ao prestador do serviço administrar sua atividade de sorte a perseguir aquela economicidade.

O pleno exercício do contraditório e de ampla defesa pelo devedor, com os meios e recursos a ele inerentes, não sofre qualquer restrição decorrente do disposto no mencionado texto legal.

Destarte, não resta dúvida quanto ao fato de os incisos XXXV e LV, do artigo 5o da Constituição do Brasil não afetarem o inciso II, do § 3º, do artigo 6º, da Lei nº 8.987/95, de modo a comprometer a constitucionalidade do mesmo.

Nossos Tribunais têm firmado posição no sentido de não privilegiar quem se encontra inadimplente, admitindo a legalidade da medida posta em prática pelas concessionárias, quando promovem a suspensão do serviço a unidades que a consomem e não pagam por isso.

A fim de dissipar qualquer dúvida a respeito do assunto, e ainda, para que não restem quaisquer questionamentos quanto à procedência e a lisura no modo de agir das concessionárias entende-se ser de suma importância transcrever o acórdão publicado em 01/03/2004, onde a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), a fim de uniformizar a jurisprudência daquele Superior Tribunal, a ser seguida pelas duas turmas que a integram e apreciam as questões relativas a Direito Público (Primeira e Segunda Turma), ao julgar o REsp nº 363.943, decidiu que “a distribuição de energia é feita, em sua grande maioria, por empresas privadas que não estão obrigadas a fazer benemerência em favor de pessoas desempregadas. A circunstância de elas prestarem serviços de primeira necessidade não as obriga ao fornecimento gratuito... O corte é doloroso, mas não acarreta vexame. Vergonha maior é o desemprego e a miséria que ele acarreta... é lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica mantém inadimplência no pagamento da respectiva conta”. (grifamos).

Isto posto, parece indiscutível a configuração jurídica dos direitos e deveres das concessionárias como direito especial perante o CDC, que constitui, por sua própria natureza, uma lei geral. Se assim for, não se pode olvidar que a lei especial, que atende às peculiaridades da realidade socioeconômica regulada, deve prevalecer sobre aquela que dispõe de maneira genérica.

Desta forma, a suspensão do serviço ao consumidor inadimplente tem amparo na Lei, na Doutrina, na Jurisprudência, e do ponto de vista social e econômico, não é, de modo algum, vedada pelo CDC.

Sob a ótica da Constituição Federal, portanto, parece perfeitamente admissível a suspensão do serviço.

Impondo a legislação deveres à concessionária - especialmente o de prestar serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários -, nos termos da Lei, das normas pertinentes e dos contratos de concessão e de fornecimento, também lhe outorga direitos, dentre os quais o de suspender o serviço a unidade consumidora inadimplente, sem que isso represente constrangimento ou ameaça, providência esta que tem embasamento legal no artigo 6º, § 3º, inciso II da Lei nº 8.987/1995, como visto acima.

A suspensão do serviço a unidade do consumidor inadimplente não consubstancia penalidade, mas antes, pelo contrário, mecanismo voltado a assegurar a economicidade da prestação do serviço concedido, com reflexos marcantes no equilíbrio econômico e financeiro da concessão.

Da mesma forma, o inciso II, do § 3º, do artigo 6º, da Lei nº 8.987/95, também não contraria o inciso LV, do artigo 5º, da Constituição Federal, que admite ao prestador do serviço administrar sua atividade de sorte a perseguir aquela economicidade.

Apesar da importância e contexto histórico regulatório, legal, doutrinário e jurisprudencial, feitos os esclarecimentos acima e voltando ao foco principal da ideia e do tem deste artigo, as relações com o consumidor evoluiriam ao longo de décadas. A Aneel foi evoluindo seus regulamentos e dispondo sobre a necessidade de prévio aviso para a suspensão do serviço, ressarcimento, prazos e forma de recuperação de energia e impossibilidade de suspensão no final de semana e agora com a Lei abaixo transcrita a impossibilidade de suspensão por inadimplemento as sextas, finais de semana, feriados e vésperas. Veja abaixo o disposto na Lei n° 14.015, de 15 de junho de 2020:

...

Art. 2º A Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017 , passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 5º  .......................................................................................................................

.....................................................................................................................................

XVI – comunicação prévia ao consumidor de que o serviço será desligado em virtude de inadimplemento, bem como do dia a partir do qual será realizado o desligamento, necessariamente durante horário comercial.

Parágrafo único. A taxa de religação de serviços não será devida se houver descumprimento da exigência de notificação prévia ao consumidor prevista no inciso XVI do caput deste artigo, o que ensejará a aplicação de multa à concessionária, conforme regulamentação.” (NR)

“Art. 6º  .......................................................................................................................

.....................................................................................................................................

VII – comunicação prévia da suspensão da prestação de serviço.

Parágrafo único. É vedada a suspensão da prestação de serviço em virtude de inadimplemento por parte do usuário que se inicie na sexta-feira, no sábado ou no domingo, bem como em feriado ou no dia anterior a feriado.” (NR)

Art. 3º O art. 6º da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 , passa a vigorar acrescido do seguinte § 4º:

“Art. 6º  ......................................................................................................................

....................................................................................................................................

    • 4º A interrupção do serviço na hipótese prevista no inciso II do § 3º deste artigo não poderá iniciar-se na sexta-feira, no sábado ou no domingo, nem em feriado ou no dia anterior a feriado.” (NR)

Art. 4º  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação .

A Resolução 1000 da ANEEL contempla o que a lei acima descrita previu e impede a suspensão do serviço por inadimplemento, nas mesmas condições.

Finalizando, cabe alertar que a vedação de corte da energia nos finais de semana e feriados passa a vigorar a partir de 01/04/2022, bem como, começa a valer na mesma data a obrigatoriedade a concessionária de distribuição de que esta deverá avisar ao consumidor quando começa a suspensão do serviço.

Louvo a convergência da Aneel com a SENACON, Procons e este diálogo gerou nesta resolução evoluções nas relações (não somente a citada neste pequeno texto, bem como em outros regulamentos).

Para a empresa é fundamental distribuir e receber pela energia e é importante, também, que evitemos açodamentos e divergências entre áreas internas da empresa, que possuem metas distintas e, muitas das vezes, conflitivas.

Isso gera suspensões indevidas, muitas ações no judiciário, desgaste de imagem, má avaliação pelo consumidor e este jogo ninguém ganha.

Fábio Amorim é sócio da Fábio Amorim Consultoria Ltda, presidente da Comissão de Direito de Energia Elétrica da OAB/RJ, conselheiro do Conselho Empresarial de Energia da ACRJ, professor, palestrante e árbitro em Câmaras Arbitrais Renomadas

 [1] In, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado pelos Autores do Anteprojeto. Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro. 5ª Edição. P.141.

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