Opinião

Análise do PL Combustível do Futuro e o mercado de biometano

A questão que se coloca é a viabilidade da implementação do programa do ponto de vista de capacidade de produção e desenvolvimento da logística para o produto

Por Marcus D'Elia

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Co autor: Henrique Santucci*

O PL 4516/2023 – Combustível do Futuro, aprovado pela Câmara Federal e encaminhado ao Senado Federal, poderá modificar fortemente o mercado nacional de biometano. O PL 4516/2023 estabelece a obrigatoriedade da participação do produto na matriz energética brasileira. Diferentemente do etanol e biodiesel, não há mandato obrigatório para mistura do produto no gás natural. No entanto, a nova lei estabelece a comprovação da redução de emissões de GEE por parte de produtores e importadores através da compra/consumo de biometano ou compra de certificados de garantia de origem de biometano (CGOB).

O Programa Nacional de Incentivo ao Biometano estabelece percentuais de redução de GEE que podem variar de 1% a 10% conforme decisão do CNPE. A partir de 2026, a meta seria de 1% - desta forma, a produção de biometano deveria representar em volume entre 1,11% e 1,42% do consumo de gás natural no Brasil, de modo a atender às obrigações da nova lei. O percentual em volume dependerá do fator adotado de redução de emissões de GEE do biometano em relação ao gás natural.

Considerando a demanda nacional por gás natural em 2023, o consumo médio diário atingiu o valor de 61,7 MM Nm3/dia, ou seja, caso se aplicasse a legislação em discussão no Legislativo, a produção de biometano deveria chegar a 685 M Nm3/dia. A capacidade instalada de unidades de biometano no país atualmente é de 417 M Nm3/dia, conforme dados da ANP.

Fig 1 – Consumo de gás natural no Brasil.

 

A questão que se coloca é a viabilidade da implementação do programa do ponto de vista de capacidade de produção e desenvolvimento da logística para o produto. Para abordar a capacidade de produção nacional, pode-se avaliar três aspectos: a disponibilidade de insumos, a capacidade das unidades de produção de biometano e a demanda potencial pelo produto. Para o desenvolvimento da logística devem ser analisados outros dois fatores: os modais de transporte disponíveis e a distância em relação aos pontos de consumo do biometano. Neste artigo serão avaliados dois tipos de resíduos utilizados para produção de biometano: resíduos sólidos urbanos e resíduos sucroenergéticos.

Resíduos Sólidos Urbanos

Para a avaliação de disponibilidade de insumos, encontra-se no mapa abaixo a distribuição de municípios com aterros sanitários em operação no Brasil em 2022. Notadamente as regiões sul e sudeste possuem o maior número de municípios com aterros sanitários, essenciais para a destinação e concentração dos resíduos urbanos permitindo a instalação de unidades de produção de biometano. No caso deste tipo de resíduo existem dois fatores positivos: a proximidade de grandes centros urbanos geradores de resíduo, que permite maior escala na produção de gás, e a possibilidade do consumo local do biometano para suprimento à indústria e transporte.

Fig.2 - Municípios com disponibilidade de aterros sanitários.
Fonte: SINIR+ / Set 2021

 

Atualmente existem cinco unidades de produção de biometano a partir de aterros sanitários – o mapa abaixo apresenta a localização destas usinas e sua capacidade de produção.

Fig 3 – Produção de biometano a partir de aterros sanitários. Fonte: ANP.

 

Do ponto de vista da logística, o desenvolvimento da produção de biometano a partir de aterros sanitários reduz o custo logístico para entrega do produto, facilitando a implementação de soluções como dutos específicos para conexão das unidades de produção até pontos de consumo. Mesmo que a opção seja pelo transporte do biometano através de veículos pressurizados (GNC), a possibilidade do uso de ciclos fechados de suprimento em curtas distâncias simplifica a logística para o consumidor. Em grandes centros estes consumidores podem ser representados por indústrias, revendas de GNV, hubs para conexão em redes de distribuição de gás natural.

Resíduos Sucroenergéticos

Os insumos para produção de biometano a partir de resíduos sucroenergéticos são originados nas usinas de produção de açúcar e etanol. As usinas que representam cerca de 76% da produção de etanol de cana no país em 2023 estão presentes nos estados de São Paulo, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e indicam uma forte concentração no interior do país, com a exceção específica do litoral do nordeste. Dada a geração própria dos resíduos a serem utilizados para produção de biometano, é natural que as unidades de produção estejam próximas às usinas.

Fig 4 – Localização das usinas produtoras de açúcar e etanol. Fonte: ANP.

 

Na produção de biometano, a partir destes resíduos, pode-se diferenciar dois casos: usinas no estado de São Paulo e usinas localizadas em Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. No primeiro caso, em São Paulo há uma grande densidade de usinas, o que permite que uma mesma unidade de produção de biometano seja compartilhada por diferentes usinas, aumentando a escala e reduzindo custos de produção. Além disso, a produção de biometano nesta região pode ser privilegiada pelos mesmos fatores observados na produção a partir de aterros sanitários: possibilidade do consumo local do biometano para suprimento à indústria e transporte, e a facilidade de utilização dos modais de transporte dutoviário e rodoviário em curta distância. A proximidade de pontos de consumo e da rede de gasodutos são fatores que beneficiam fortemente a produção no Estado.

No segundo caso, usinas localizadas nos estados do Centro-Oeste, o principal fator que beneficia a produção de biometano é a possibilidade de utilizar a escala das grandes usinas de açúcar e etanol para permitir menores custos de produção. No entanto, em relação ao consumo e logística, o cenário difere substancialmente. Nestes estados, a principal demanda para o produto seria o consumo pelo setor de transporte, considerando a migração da frota de veículos e máquinas agrícolas para o uso de biometano. A demanda limitada para uso industrial, a ausência de gasodutos e distância em relação a grandes centros são fatores que tornam a produção de biometano nestes locais menos atraente. Ou seja, o custo logístico passa a ser um fator determinante para o investimento nestes estados.

No mapa abaixo estão as unidades atuais e previstas para produção de biometano a partir de resíduos sucroenergéticos, assim como as respectivas capacidades.

Fig 5 –Produção de biometano a partir de usinas de açúcar/etanol Fonte: EPE/CIbiogas.

 

Conforme projeções da EPE em nota técnica de 2021, o potencial de produção de biometano, consideradas todas as fontes, seria de 216 MM Nm3/dia, significativamente superior à demanda total de gás natural atualmente. Estima-se também que a geração a partir de resíduos sucroenergéticos é cerca de seis vezes maior do que o potencial esperado para geração a partir de resíduos sólidos urbanos. Tais projeções se baseiam na disponibilidade de insumos, sugerindo números elevados, porém de difícil implementação, e frequentemente utilizadas como referência no mercado.

Dados os fatores discutidos anteriormente, espera-se que haja a influência de fatores como: localização da demanda, tipos de consumidores, custo logístico, entre outros não mencionados, na implementação de novas unidades de produção de biometano, e não somente a projeção de produção baseada na disponibilidade de insumos. Ou seja, as projeções de potencial de produção atuais estão distantes da realidade econômica dos projetos em discussão.

Este contexto deveria ser considerado pelo CNPE na definição dos percentuais futuros de redução de GEE para o mercado de gás natural, que correspondem à obrigação de produção de biometano no país, de forma a tornar estes objetivos alcançáveis sem influenciar o preço final do gás natural para o consumidor.

 


* Henrique Santucci é engenheiro químico e Consultor da Leggio Consultoria

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