
Mecanismo concorrencial e o delicado equilíbrio entre os Poderes
Opinião
Mecanismo concorrencial e o delicado equilíbrio entre os Poderes
Espera-se que a judicialização do risco hidrológico nas próximas liquidações financeiras seja totalmente pacificada, com novas ações dos Poderes e rodadas do mecanismo concorrencial se necessário, melhorando a segurança, a previsibilidade e a confiança no setor elétrico

Ran Hirschl, importante professor de Direito da Universidade de Toronto, em sua obra “Towards Juristocracy”, de 2004, define o fenômeno global da judicialização como um processo em que questões tradicionalmente resolvidas pelo Legislativo ou Executivo passam a ser decididas no âmbito judicial, afetando o equilíbrio entre esses Poderes.
A obra parte da constatação de que, desde meados do século XX, há uma expansão significativa do poder judicial, especialmente em democracias constitucionais, como uma característica relacionada a um Neoconstitucionalismo e à judicialização. Esse movimento, que Hirschl denomina de avanço rumo a uma juristocracia, altera profundamente o equilíbrio entre os Poderes do Estado, deslocando para juízes decisões centrais sobre direitos, políticas públicas, economia e governança.
No setor elétrico brasileiro, um exemplo tem sido a questão da judicialização do risco hidrológico (GSF - Generation Scaling Factor) e seu impacto nas liquidações financeiras mensais no Mercado de Curto Prazo (MCP), que se arrasta há mais de dez anos sem solução definitiva.
No Ambiente de Contratação Livre (ACL), a energia contratada pelos consumidores deve, idealmente, corresponder à energia efetivamente consumida. Quando isso não acontece, por consumo acima ou abaixo do previsto, entra em cena o MCP, com liquidação financeira mensal administrada pela CCEE, que ajusta financeiramente (débito/crédito) essas diferenças (CCEE, EDP, 2025). Processo análogo ocorre para sobras e déficits do lado das usinas de geração e comercializadoras de energia elétrica no ACL.
O problema da judicialização no MCP surgiu com o inconformismo de determinados geradores hídricos que ficaram na posição de devedores e tiveram menos energia do que o previsto em seus compromissos e em sua garantia física, buscando o amparo na esfera judicial e conseguindo as chamadas “liminares do risco hidrológico”, protegendo-os contra os efeitos da exposição no MCP.
Por outro lado, os agentes do setor elétrico que têm créditos no MCP sofreram os efeitos dessas liminares e enfrentam graves problemas para receberem suas receitas no MCP há mais de dez anos. Em 2020, por exemplo, de cada R$ 100,00 de crédito nessas liquidações, na média, os agentes sem liminares de proteção à inadimplência receberam R$ 1,57 apenas e a dívida judicializada total neste tema chegou ao recorde R$ 10,3 bilhões em dezembro daquele ano.
Depois de ações do Legislativo e do Executivo, a dívida referente às liminares do risco hidrológico se estabilizou em torno de R$ 1 bilhão, mas persistia neste patamar desde novembro de 2021, ainda afetando os agentes quanto ao recebimento de seus créditos nas liquidações financeiras mensais promovidas pela CCEE.
No entanto, a recente Medida Provisória nº 1.300/2025 - que aborda assuntos polêmicos - tem o mérito de apresentar tratamento para o tema tão complexo da judicialização do risco hidrológico: o mecanismo concorrencial centralizado operacionalizado pela CCEE.
O mecanismo concorrencial permite a negociação de títulos, cujo valor é tal que a soma dos títulos resulte no total de valores não pagos na liquidação do MCP. O valor de face dos títulos adquiridos permite ao comprador desses títulos e titular da outorga a compensação mediante a extensão do prazo de outorga do empreendimento participante do chamado Mecanismo de Realocação de Energia (MRE), limitada a sete anos.
Os pagamentos resultantes do mecanismo concorrencial são destinados para abater os valores não pagos nas liquidações financeiras do MCP decorrentes das ações judiciais referentes aos efeitos de riscos hidrológicos.
Assim, no dia 13 de agosto último, a CCEE promoveu uma liquidação extraordinária em que se arrecadou R$ 1,34 bilhão para tratar desse passivo que impacta as operações no MCP. Os efeitos positivos do mecanismo concorrencial foram refletidos já a partir da liquidação referente a julho de 2025, que ocorreu nos dias 08 e 09 de setembro de 2025.
Segundo a CCEE (2025), os valores represados devido a liminares que isentam ou limitam os efeitos do risco hidrológico caíram aproximadamente 72%, passando de R$ 1,09 bilhão para R$ 310,46 milhões neste mês, representando o menor valor desde 2015.
Ainda assim, os agentes sem liminares de proteção à inadimplência receberam R$ 0,84 para cada R$ 100,00 de crédito na última liquidação, mas a média de pagamento para esses agentes em 2025 subiu para 44,8% de seus créditos, a maior nos últimos anos.
Confia-se que a judicialização do risco hidrológico fique sendo um exemplo advindo da juristocracia em que o protagonismo judicial levou a distorções do Ambiente Institucional, prejudicando agentes que não deram causa direta na questão do risco hidrológico e afetando o delicado equilíbrio entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Por fim, espera-se que a questão judicial do risco hidrológico nas próximas liquidações financeiras mensais seja totalmente pacificada, com novas ações dos Poderes e rodadas do mecanismo concorrencial se necessário, melhorando a segurança, a previsibilidade e a confiança no Ambiente Institucional do setor elétrico brasileiro.