Opinião

A transição energética e os outros usos do gás natural

A redução da demanda do gás no contexto da transição energética, cuja discussão concentra-se no uso como combustível, deve acarretar consequências não planejadas em setores da economia onde o gás é usado de forma indireta

Por Ieda Gomes

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Muito se tem discutido sobre o papel do gás natural na transição energética, mas a discussão concentra-se no uso do gás como combustível, sem relevar outros usos fundamentais para a economia mundial. O que aconteceria se a oferta de gás natural seguisse a previsão da AIE - Cenário Net Zero (NZE), reduzindo-se a demanda dos atuais 4,0 trilhões de m3/ano em 2021 para 3,1 trilhões de m3 em 2050? Isso equivale a uma redução de 900 bilhões de m3/ano (BCM), ou seja, um consumo equivalente ao total da região Ásia-Pacífico.

O gás natural é usado como matéria prima na produção de fertilizantes nitrogenados e de produtos petroquímicos. Em 2021, a produção mundial de amônia para fertilizantes foi de cerca de 150 Mton, das quais 65% tendo o gás natural como matéria prima. Isso demandou um volume de 80 BCM de gás, com estimativa de crescimento para 100 BCM em 2025 (AIE). Estima-se uma demanda de amônia para fertilizantes de 229-253 Mton em 2050, que seria suprida por 122-135 BCM de gás com captura de CO2 ou por hidrogênio verde. O preço internacional da amônia era de USD 250-480/tonelada, antes da guerra na Ucrânia. Em julho 2022,  o preço spot é da ordem de USD 1000/tonelada, ocasionando a suspensão da produção de diversas plantas de fertilizantes na Europa, pois a produção econômica de amônia requer preços de gás da ordem de USD 4-6/MMBtu, enquanto os preços TTF para entrega em agosto de 2022 estão cotados a USD 55/MMBtu.

O preço da amônia verde é da ordem de USD 720/tonelada. Em 2050, esses preços poderiam cair para USD 310-610/tonelada, se o custo da energia renovável cair para USD 20/MWh e a eficiência dos eletrolisadores ultrapassar 75%.

Convém ainda ressaltar que AIE e IRENA preveem o crescimento da produção global de amônia para 766 Mton em 2050, versus 200 Mton em 2021, incluindo outros usos como combustivel. O aumento de 566 Mton/ano requeriria 2300 GW de energias renováveis, ou seja 140% da capacidade total atual instalada de energia solar e eólica.

Se a população mundial atingir 9 bilhões em 2050, a produção de amônia a preços competitivos é condição indispensável para alimentar um contigente adicional de 2 bilhões de pessoas, a maior parte vivendo na Ásia e a na África. Uma redução drástica na produção de gás natural e custos elevados de amônia azul (com CCS) e verde poderão contribuir para o aumento da fome e desigualdade social.

Outro derivado da exploração e produção de gás natural é o gás hélio, usado amplamente na medicina, como refrigerante de aparelhos de ressonância magnética e na produção de misturas para respiração, na indústria eletrôncia e de semicondutores, na detecção de vazamentos e nas operações de soldagem. O hélio é encontrado associado ao gás natural, sendo economicamente explorado em teores superiores a 0,3% e é considerado um recurso essencial e não renovável. Alguns campos no Texas contêm 7% de hélio, o que agrega um alto valor à produção local de gás natural, com preços spot de USD 10,6 a 21,2/m3.

Em 2019 o consumo mundial de hélio atingiu 62 bilhões de m3 por ano, com um crescimento anual de 3% e cerca de 40% da oferta proveniente dos EUA. Outros produtores são Qatar, Rússia, Argélia e Austrália. Com a exaustão das reservas do US National Helium Reserve, no Texas, seria necessário encontrar outras fontes de suprimento, o que seria dificultado se a produção mundial de gás natural fosse drasticamente reduzida.

Um outro uso indireto do gás natural é o aproveitamento do CO2 recuperado como subproduto da fabricação de hidrogênio ou amônia cinza ​​na produção de fertilizantes. A embalagem em atmosfera modificada (MAP) é utilizada como meio de conservação para prolongar a vida útil de diversos produtos alimentícios. O CO2  é normalmente incluído como agente antimicrobiano e inibidor do crescimento de microrganismos aeróbicos, em misturas de no mínimo 20% com nitrogênio.

O CO2 em atmosfera controlada é usado em embalagens para carnes,  peixes, refeições prontas, produtos combinados e de panificação.  Com a parada das plantas de produção de fertilizantes utilizando gás natural na Europa, está ocorrendo uma escassez de CO2, que também está afetando a indústria de bebidas carbonadas.

O phase-out do gás na transição energética deve acarretar consequências não planejadas em diversos setores da economia, para além do uso como combustível.

 

 

 

Ieda Gomes é uma consultora independente e membro do conselho de administração de empresas internacionais de energia, infraestrutura e certificação.

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