Opinião

O engodo da ‘Ilha do Gás’ em São Paulo

Com assinatura do novo contrato da Comgás com a Petrobras, o argumento de “ilhamento de mercado” fica difícil de se sustentar para atacar o gasoduto de distribuição Subida da Serra

Por Bruno Armbrust

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No Brasil, investir no desenvolvimento do setor de gás natural parece ser uma atividade de risco. Senão, como explicar que um projeto, aderente à regulação e tão relevante para a segurança energética e a competitividade, como o gasoduto de distribuição Subida da Serra, construído pela concessionária paulista de gás canalizado, a Comgás, possa sofrer seguidas críticas?

A mais recente delas vem de um estudo do Centro de Estudos e Regulação em Infraestrutura (Ceri-FGV), que, segundo divulgado pela mídia, teria sido encomendado pela Associação das Transportadoras (ATGás).

O estudo em questão repisa um argumento de que o projeto Subida da Serra supostamente favorece o “ilhamento do mercado” de gás em São Paulo e que alegadamente determinaria a formação de um monopólio regional.

A tese “ilhamento do mercado” envelheceu mal. O estudo que, dentre outros, faz referência a um artigo recente de minha autoria sobre a importância do Subida da Serra, é datado de maio deste ano e sua divulgação ocorreu somente no início de agosto. Nesse ínterim, em 11 de julho, surgiu um fato relevante que foi a assinatura de um contrato da própria Comgás com a Petrobras para o fornecimento de gás natural por 11 anos pela petroleira, a partir de 1º de janeiro de 2024 com vigência até 31 de dezembro de 2034.

A redução de preços obtida nesse acordo, em relação aos contratos de gás vigentes, é resultado direto de uma chamada pública aberta pela distribuidora de São Paulo, com participação de múltiplos agentes, em processo transparente que a Petrobras, mais uma vez, saiu vitoriosa.

A pergunta que fica: que “ilhamento de mercado” é esse em que o agente dominante seguirá como principal supridor da molécula de gás natural, com um volume que corresponde a pelo menos 75% da demanda da distribuidora, num horizonte de longos 11 anos?

Como se vê, não para em pé a narrativa de que o Subida da Serra institui uma "Ilha de Gás" em SP. Muito pelo contrário. O projeto reforça a infraestrutura de distribuição entre a Baixada Santista e a Grande São Paulo, e representa uma nova opção para que os clientes da concessionária, os atuais e os futuros, tenham acesso a novas fontes de molécula em bases mais competitivas. E isso traz benefícios diretos para os consumidores, inclusive alguns dos mais significativos polos industriais, visto que a área de concessão da distribuidora concentra parte expressiva do PIB.

O mencionado estudo endossa algumas alegações da ATGás, associação que emergiu a partir da privatização das transportadoras nos últimos anos, e defende a cobrança de tarifas adicionais de transporte sobre infraestruturas implantadas por outros elos da cadeia que foram construídas legitimamente dentro do marco regulatório vigente.

Do ponto de vista regulatório, não nos parece adequado que a ATGas insista em suas teses quanto ao Subida da Serra, como se acreditasse que as transportadoras detenham áreas de concessão em regime de exclusividade, acreditando ser legítimo se cobrar tarifas sobre o gás que será movimentado num projeto, iniciado em 2019, no qual todo o investimento foi feito no âmbito da base de ativos regulatórios da Comgás, ou seja, pago pelos consumidores paulistas.

A divulgação desse estudo Ceri-FGV, num momento em que a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) se encontra em pleno processo de consulta pública sobre o projeto do Subida da Serra, buscando alcançar um acordo deste regulador federal com a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp), traz, no mínimo, uma perturbação indesejada ao processo.

A agenda das transportadoras deveria, nesse momento, estar mais focada em ações visando a garantia de acesso indiscriminado ao transporte pelos distintos comercializadores, condições contratuais simplificadas e tarifas mais acessíveis, como, também, investir em novos projetos visando a consolidação de um livre mercado de gás. Dois anos depois da sanção da Nova Lei do Gás, que instituiu o regime de autorização para acelerar a construção de novas infraestruturas, ainda não se viu o resultado esperado.

Outro importante aspecto a ser ressaltado é que o estudo deixou de considerar o fato de que, mesmo sem investimentos significativos, as receitas das transportadoras devem crescer nos próximos anos com a entrada de novos volumes nas suas malhas, tanto no Sudeste como no Nordeste, com o crescimento de oferta projetado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), que confirmou, no final de julho, uma estimativa de que o gás natural injetado na malha de dutos nacional saia dos 134 milhões de metros cúbicos/dia (m³) em 2023 para 182 milhões de m³/dia em 10 anos, uma alta de 32%. Isso será traduzido com gás do pré-sal e dos campos em Sergipe, sem falar das perspectivas de progresso desses números com o programa Gás Para Empregar e outras fronteiras exploratórias que poderão ser abertas.

É nesse contexto que não se compreende o ponto de vista dos que defendem que o Subida da Serra deveria ser classificado como um gasoduto de transporte. Pelo contrário, o gasoduto de distribuição em questão, além de estar totalmente aderente à regulação, chega para fortalecer o mercado de gás brasileiro, criando mais uma opção de gás competitivo para o consumidor paulista. Se existe uma ilha de gás na região Sudeste, essa ilha por enquanto ainda pertence à Petrobras

Vale lembrar que o principal objetivo de um processo de liberalização de um mercado é disponibilizar ao cliente final um fornecimento seguro a preços competitivos. A liberalização é uma mudança de filosofia rumo a uma regulação orientada à concorrência e, nesse sentido, o Subida da Serra se encaixa perfeitamente. No médio e longo prazo o desenvolvimento do livre mercado trará benefícios para todos.

Lutar para que o gás fique mais barato para o cliente final deveria ser algo a ser defendido por todos, em especial num país que precisa tanto de uma energia mais competitiva para se reindustrializar.

 

Bruno Armbrust é sócio diretor fundador da ARM Consultoria, ex-presidente do grupo Naturgy na Itália de 2004 a 2007 e no Brasil de 2007 a 2019. Escreve na Brasil Energia a cada dois meses.

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