Opinião
Sem a benção de ano novo e ainda sob pressão
A inesperada e ainda presente ruptura mostra a dimensão dos desafios de hoje, tanto ambientais quanto sociais, assim como a direção da transição energética
A vacinação em massa marca uma vitória na guerra contra a Covid-19, e outras batalhas virão, mas o que nos reserva 2021?
A imunização demandará de dois a quatro anos, contando os 7,7 bilhões de indivíduos que somam a população. A possibilidade da doença se tornar endêmica nem é considerada. Além disso, até aqui, a contradição entre a realidade e a bolsa chama a atenção: em 2020, enquanto o PIB mundial perdeu 6%, o ganho do índice Nasdaq superou 40% e do S&P 500 beirou 20%. A Exxon deixou de ser listada neste último, e a maior operação de fusão e aquisição, 44 bilhões de dólares, envolveu provedores de informação: justamente a S&P e a IHS Markit, cujo Vice-Chairman é Daniel Yergin, o premiado especialista de energia.
O mercado aposta na ciência, na retomada e, cada vez mais, na mudança. E nós?
O tamanho da queda explica a recuperação quase mecânica da economia, porém, tudo mais resta a fazer, e não se trata de refazer o passado. Em 2020, o PIB mundial caiu três vezes mais que no crash em 2008 e, nos Estados Unidos, em março, um pacote de 3 trilhões de dólares (14% do PIB do país) impediu o colapso. Na União Europeia foi criado um fundo de 0,9 bilhão de dólares para financiar as despesas emergenciais. Na China, durante o último trimestre de 2020, a retomada pressionou as matérias-primas e os combustíveis. A volatilidade dos preços do barril, das taxas de câmbio e o risco de inflação compõem o novo normal na macroeconomia mundial pelos próximos dois anos; a conjuntura não podia ser mais paradoxal. Enquanto isso, nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia, as políticas fiscais e monetárias estendem o limite do imaginável. Por quanto tempo, ninguém sabe.
A despeito do quadro incerto e da abrupta ruptura, excluída uma recaída na saúde pública (e na economia) nos próximos seis a doze meses, a recuperação se beneficiará do aprendizado decorrente da maior crise depois de 1929 e que, em definitivo, aboliu velhos paradigmas. A retomada também ocorrerá depois do enxugamento dos mercados e da completa reorganização industrial. Basta ver o que acontece com as montadoras de veículos, entre os canteiros navais, ou ainda na siderurgia.
Na geração, as térmicas a carvão, obsoletas, poluidoras e velhas, foram as primeiras a terem as atividades encerradas. No petróleo, o instável alinhamento entre sauditas e russos e o acirramento da competição interenergética alimentam a volatilidade e elevam o risco, já alto por natureza. Uma eventual desvalorização do dólar, somada à timidez da demanda e políticas regulatórias pró-ambientais se combinariam para degradar ainda mais a realização de lucros das grandes petroleiras, montadoras e siderúrgicas.
Em momentos assim, em que a crise se instala, sem data para acabar, vale a precaução, antes mesmo de qualquer explicação, que só o tempo trará. A súbita quebra da rotina e o prolongado confinamento revelaram anacronismos, idiossincrasias e iniquidade social. Uma oportunidade para questionar hábitos de consumo, regras de comportamento, arraigados valores sociais e, até mesmo, rever a forma de ensinar, trabalhar e se entreter. Quem diria que chegaríamos a tanto? A paralisia confirmou que é custoso, mas, não impossível, mudar padrões e referências. De todo modo, a inesperada e ainda presente ruptura fixa a dimensão do desafio, tanto ambiental quanto social, assim como a direção da transição energética. A década mal se inicia: mãos à obra.
Duque Dutra é Mestre em Planejamento Energético, Doutor em Ciências Econômicas e Professor Adjunto da Escola de Química da UFRJ