Opinião

O Retardo da Eletrificação da Frota de Veículos no Brasil

O Brasil responde por cerca de 3,5% do estoque de veículos em circulação no mundo e de apenas 0,4% do total de carros elétricos. Neste artigo, primeira parte de uma análise sobre o ritmo da eletrificação da frota brasileira, estão relacionados os desafios e os cenários previstos para o crescimento das vendas de veículos inteiramente elétricos no país

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  • Por Luís Eduardo Duque Dutra e Fernando Antônio Vidon Giordano 

A eletrificação da frota automotiva se iniciou na década passada e tomará vulto na presente. Entre os 1,3 bilhão de veículos em circulação em 2020, somente onze milhões não eram equipados com motores convencionais. Eles dispunham de baterias e propulsores elétricos, ou são do tipo híbrido, o que pode incluir diferentes combinações de sistemas de propulsão, de recarga e baterias. Somados, perfaziam menos de um por cento da frota mundial, o que dá a exata medida de onde se está no processo necessariamente longo, como toda mudança estrutural.

Comparado aos mercados mais avançados, como China e Europa, a eletrificação da frota nacional é incipiente, e já acumula retardo importante que se agiganta a olhos vistos. O desafio é não perder em definitivo o passo da indústria automobilística. Frente aos onze milhões de veículos com novos propulsores rodando no mundo, no Brasil o número dos elétricos e híbridos registrados era de 45.000 unidades em 2020, sendo a esmagadora maioria de automóveis.

Para um mercado que se colocava entre os seis a sete maiores não faz muito tempo, o declínio das vendas foi acentuado e, após recuperação moderada ocorrida no triênio 2017, 2018 e 2019, a produção ainda se encontrava um quarto abaixo do alcançado em 2013 (mais de 3,7 milhões de unidades fabricadas à época). Decorrência do primeiro ano da pandemia, em 2020 a produção mal superou dois milhões de veículos, patamar de dezesseis anos atrás.

Sem dúvida, na década que se termina, o fraco desempenho da indústria brasileira e do setor automobilístico explica parte do atraso. As vendas não confirmaram as expectativas da primeira década do novo século, ao acompanharem a rápida deterioração macroeconômica após 2013. Depois disso, a perda de interesse das montadoras em investir no País se acentuou, afastou o mercado local das estratégias e prioridades internacionais de forma que, a despeito do discurso, a eletrificação não está na pauta de nenhuma grande empresa aqui instalada.

Atualmente, o Brasil responde por cerca de 3,5% do estoque de veículos em circulação no mundo, numa participação declinante e, em termos de carros elétricos, é ínfima: apenas 0,4% do total. Reverter a tendência de queda das vendas e produção não será suficiente para garantir maior velocidade na transformação e adoção em massa de automóveis inteiramente elétricos, como será visto. O pouco interesse do capital, a falta de infraestrutura, o preço de venda dos automóveis e a inexistência de alternativas nos demais segmentos da indústria se combinarão para fazer da eletrificação da frota brasileira um desafio extraordinário.

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O perfil das vendas dos novos veículos indica o descompasso com outros centros de produção automotivos. Além do número limitado, aqui, a maioria se refere aos automóveis com motores híbridos de todos os tipos. Veículos inteiramente elétricos compuseram somente 7% das vendas em 2020. Na frota mundial, acontece o contrário: os últimos respondem por dois terços das vendas e tudo aponta para uma participação crescente nos próximos cinco anos.[1]

Embora o País seja reconhecidamente rico em fontes renováveis e disponha de um sistema elétrico unificado há décadas, como nenhum outro no mundo, esse perfil em que dominam os veículos híbridos tem justificativa clara. Praticamente inexiste uma infraestrutura de abastecimento, sendo raros os pontos de recarga “rápida” (públicos ou privados). Mesmo prédios e condomínios não dispõem de tomadas adequadas. Ao final de 2020, cerca de quinhentos pontos de recarga estavam instalados no Brasil e mais de quatrocentos deles localizados nas regiões Sul e Sudeste. Considerando a extensão continental, o número é absolutamente insignificante, até mesmo para as duas regiões.

A literatura econômica conhece e sublinha a “ansiedade” do cliente quanto à inovação, é o que caracteriza o comprador de jogos, iphones e aplicativos. Na compra de um automóvel elétrico, tendo em vista o gasto, as dúvidas se referem ao desempenho do propulsor e da bateria. O maior pavor é ficar sem eletricidade no meio do trajeto, longe de um ponto de recarga. A menor densidade energética das baterias, comparada à densidade que guarda um tanque de óleo diesel ou gasolina, soma-se ao elevado tempo de recarga, para fazer dos “eletropostos” uma variável crítica da decisão de comprar, ou não, o veículo de novo tipo.

Por sua vez, em virtude da falta destes postos, da autonomia que supera pouco mais de trezentos quilômetros e que, em casa, numa tomada de 120 Volts, a recarga integral pode exigir doze horas, entende-se que, apesar das dotações naturais, no Brasil a preferência tenha recaído sobre os veículos híbridos. Como indica o nome, eles dispõem de dois motores, um elétrico e outro convencional. Muitos deles dispõem de um sistema de regeneração que recupera a energia das frenagens e descidas, enquanto outros, além disso, podem ser recarregados, se conectados à rede eléctrica.

Por essa razão, além do ganho de flexibilidade evidente, os veículos híbridos apresentam muito maior autonomia e, assim, uma vantagem incontestável frente àqueles a bateria e inteiramente elétricos, ao menos no Brasil. Ademais, as configurações híbridas são um terço mais eficientes energeticamente que os veículos movidos a gasolina. Por fim, e ainda importante, sempre muito caros, esses modelos híbridos são um terço mais baratos que os automóveis inteiramente elétricos.

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De todo modo, uma ampla rede de infraestrutura de recarga, o que não se constrói no curto prazo, nem sem planejamento, revela-se como imprescindível para qualquer avanço na matéria. A comparação com Portugal é flagrante. Ao final de 2021, existiam mais de sete mil pontos de recarga (quatorze vezes mais do que no Brasil), em aproximadamente três mil locais diferentes, do Norte ao Sul do país. O condutor português não sofre de ansiedade quanto ao novo carro elétrico e isso explica o porquê do pequeno país europeu, que nem muito rico é, ter avançado na eletrificação dos automóveis.

Em terras lusitanas, o acesso à recarga se tornou argumento importante para o cliente local que, em 2020, no momento mais agudo da pandemia, comprou 7.876 veículos a bateria; isto é, exclusivamente elétricos. Foram oito vezes mais veículos deste tipo em comparação ao Brasil. Vale destacar a diferença de escala: Enquanto, no Brasil, foram produzidos dois milhões de veículos “leves”, em Portugal, foram vendidos 145 mil automóveis, o que representa 6% do mercado brasileiro. Mais ilustrativo do hiato recente: nos primeiros nove meses de 2021, na terrinha os automóveis integralmente elétricos responderam por 5,4% das vendas, enquanto no Brasil não alcançaram 0,1% delas.

Diante de uma eletrificação que balbucia e mal começa, as projeções em relação à frota brasileira são antes de tudo incertas e, por isso, podendo ir do simples ao dobro. Difícil apostar num ou noutro cenário em meados de 2022, tendo tão pouco como ponto de partida e a lenta retomada. Em estudo contratado pela Anfavea, a prestigiada firma em consultoria estratégica, o BCG, definiu dois cenários possíveis, alternativos e, de fato, opostos. [2]

Quanto à retomada econômica, o ritmo é o mesmo nos dois cenários. A frota nacional de veículos “leves” passaria de 45 milhões para 57 milhões de unidades entre 2020 e 2030. O incremento de 26% representará uma reversão do declínio verificado ao longo dos últimos dez anos; uma aposta ousada do estudo. Mas, aqui, não é o que interessa e, sim, a velocidade da eletrificação. No cenário “inercial”, mais cético, a participação dos propulsores não convencionais seria de inexpressivos 2%, pouco diferente da atual: inferior a 1%. Observe que, nestas contas, contabilizaram-se todos os tipos de motores: totalmente elétricos, híbridos do tipo plug-in, híbridos com regeneração e a célula combustível de hidrogênio.

No cenário denominado “convergência global”, a eletrificação seria mais rápida. Ao final da década, a participação de veículos não convencionais estaria em torno de 4%; ou seja, o dobro daquela do cenário anterior. Em resumo, das 57 milhões que estariam em circulação, em torno de 2,16 milhões unidades seriam elétricas e híbridas. Mesmo neste cenário positivo e apesar do nome, a distância em relação aos grandes mercados pouco diminuiria: segundo a Agência Internacional de Energia, em 2030, da frota mundial em circulação, 12% terão novos propulsores; em proporção, três vezes mais que no Brasil.

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As previsões do BCG sobre o ritmo da transformação da frota estão em linha com o que foi revisto por nós. O estágio incipiente da eletrificação e o fraco desempenho recente da indústria local se somam no curto prazo. As mudanças só ocorrerão na segunda metade da década e o movimento só ganhará expressão a partir da próxima década. Em 2035, no cenário de menor crescimento, o País contaria com uma frota de 62 milhões de veículos “leves” e um décimo deles seriam elétricos ou híbridos. No melhor cenário, essa participação chegaria a 18% dos veículos em circulação. Em ambas as simulações, o arranque ocorreria precisamente entre 2030 e 2035; ou seja, só daqui a dez anos.

Em relação aos países mais avançados, constata-se assim que o retardo na eletrificação da frota de veículos “leves” deve perdurar. Partindo depois e com pouco interesse das empresas do setor, a penetração dos novos veículos deve estender-se, muito provavelmente ocupando toda a década de 2030 e apenas se concluindo na seguinte. No País, além da partida retardada e da falta de infraestrutura de recarga, outros fatores dificultam o arranque: o preço dos veículos elétricos, a estratégia de venda das montadoras na periferia e o pioneiro uso de biocombustíveis, em especial do álcool hidratado derivado da cana-de-açúcar.

Dois estudos anteriores, publicados neste mesmo veículo, trataram do assunto e merecem atenção porque se completam e, assim, proporcionam uma visão prospectiva aderente à recente conjuntura – conturbada e incerta. Em fevereiro de 2022, em Cenários Petróleo, Duque Dutra resumiu “Os desafios da indústria automobilística na década de 2020”: vencer o esgotamento típico de uma indústria madura, quase antiquada, e a mudança dos padrões de locomoção em virtude da transição energética. A aposta em retomar o vigor, reproduzindo o passado em versão elétrica, é cada vez menos provável de acontecer.

Em fevereiro de 2021, Luciano Losekann e Ana Carolina Cordeiro publicaram o artigo intitulado “Os desafios da difusão dos veículos elétricos no Brasil” em Cenários Solar. Ele, portanto, é o primeiro na matéria nesta plataforma e os autores já apontavam a elevada falta de atratividade na compra dos novos veículos, comparado àqueles com motores a combustão interna. O inquestionável benefício ambiental decorrente das menores emissões demandaria enormes subsídios à compra destes veículos, de forma a equiparar as despesas.

Em termos de eletrificação, o percurso pela frente é longo e merece ainda mais atenção. A comparação das despesas do usuário-proprietário, as significativas diferenças nos segmentos da indústria automobilística, determinantes para as estratégias empresariais, e a especificidade nacional – o álcool combustível – são objeto de análise de estudo seguinte. Ele pretende ampliar a visão da natureza estrutural da mudança. De todo modo, até aqui, conclui-se que, sem uma efetiva política pública, o retardo deverá ser acentuado.

As análises seguintes, além de confirmar a conclusão anterior, sugerem qual poderia ser a mais factível trajetória para o país reverter a tendência. A degradação acentuada de sua posição na indústria automobilística, como um produtor cada vez mais periférico e, no qual, ainda por muito tempo, os veículos elétricos serão marginais, não se coaduna, nem com a abundância de recursos naturais e humanos, nem com os ativos industriais remanescentes e a engenharia existente.

 

[1] Uma análise sobre a evolução recente da eletrificação no mundo encontra-se em Giordano, Fernando (2022). A eletrificação da frota de veículos: revisão e perspectiva. Monografia MBA Executivo em Economia do Petróleo e do Gás, Escola Politécnica, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[2] BCG (2021). The decarbonization path for the Auto sector in Brazil, ANFAVEA, São Paulo. Não abordado neste texto, um terceiro cenário do estudo do BCG denomina-se “Protagonismo dos biocombustíveis”.

 

 

 

 

Luís Eduardo Duque Dutra é Doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris-Nord e Professor Adjunto da Escola de Química da UFRJ. Publicou “Capital Petróleo: a saga da indústria entre guerras, ciclos e crises” pela editora Garamond.

 

 

 

 

Fernando Antônio Vidon Giordano é Engenheiro Elétrico, formado pela UERJ e pós-graduando de Economia do Petróleo e Gás pela Escola Politécnica-DEI, UFRJ.

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