Opinião
Da urgência na reconstrução do Estado – a energia
A ausência do Estado em área estratégica, como a energia, explica a doença holandesa, o mal da abundância e a pobreza de alguns países exportadores de petróleo
Meia década de fraco crescimento que se termina numa pandemia, até agora sem fim, e um quinquênio que se mostra pouco promissor. Definitivamente, a economia mundial não vai bem. Por aqui, está pior: o crescimento cessou em 2012, ou seja, tem dez anos, se medido pelo PIB per capita em dólares deflacionados. Em 2021, o País apresentou níveis de desemprego e inflação entre os maiores do mundo. Para o fim do ano e 2023, o Brasil continuará entre aqueles que menos crescerão, preveem o FMI e o Banco Mundial. A passos largos, o futuro se distancia e não faltam – o que parece – paradoxos nesta trajetória.
Depois de 1500, os ciclos extrativos (pau-brasil, ouro, açúcar, café e borracha) ritmaram a economia doméstica, de tempos em tempos, com a promessa de fortuna. Ela jamais foi apropriada pelos nativos, ficou na mão de poucos. Ao final do “milagre brasileiro”, o país registrava a pior distribuição de renda, junto com o Haiti, na América.
No plano internacional, a posição periférica e a situação de contumaz devedor tiveram início com a independência. Bem depois, durante a segunda metade do século XX, por diversas vezes faltaram divisas estrangeiras para pagar empréstimos e importações. Foi quando duas crises do petróleo e frequentes missões do FMI demarcaram os limites da soberania e do crescimento nacional.
Atualmente é o oposto, ao menos quanto a esses dois pontos. O País exporta mais de um milhão de barris por dia e guarda 360 bilhões de dólares em reservas cambiais. Em 1999, ninguém apostaria nisso e o fato de ter parado de crescer não é, hoje, um paradoxo. É fácil de explicar: as duas conquistas datam da primeira década do século XXI; de longe, a melhor depois de 1980.
Nos últimos anos, ademais, o País ingressou em novo ciclo extrativo, quem diria, desta vez apoiado no petróleo e o crescimento se esgotou. Após declínio prolongado, em dólares e deflacionado, o PIB per capita em 2020 foi 11% menor que aquele de 2013, o mais alto já atingido. Até então, a formação bruta e a variação de estoques superavam 21% do PIB; depois de 2019, não passaram de 16%. A queda em um quinto do investimento determinou o medíocre desempenho da economia.
Não surpreende que a desindustrialização tenha acelerado. Nas vendas de produtos químicos, a importação supera 45%, ela representa mais de nove décimos dos fertilizantes e todo metanol (álcool industrial) consumido no Brasil. Combustíveis, nafta, óleo lubrificante e gás natural respondem por mais de um décimo dos gastos da Balança Comercial. E, novamente, isso não é um paradoxo: foi consequência da política dos dois últimos governos.
Se petróleo e reservas não ajudaram, muito menos colaborou a cena externa. Trump, Biden, Erdogan, Putin, Zelensky e Boris Johnson são protagonistas da escalada na tensão internacional. O resultado preocupa: guerra civil na Síria, saída do Reino Unido da União Europeia, protecionismo xenofóbico, ameaças de ciber-ataques, conflito russo-ucraniano, despesas militares em alta e embargos como arma de guerra.
Definitivamente, o cenário não é bom e, depois da pandemia, a retomada conheceu percalços não previstos: gargalos produtivos, rupturas logísticas e desabastecimento que foram acompanhados por um choque petrolífero, em pleno século XXI e às portas da transição energética. A estagflação está à espreita e, de qualquer forma, as turbulências já reduziram em um terço as projeções de crescimento para 2022 e 2023.
De volta às questões domésticas, a reconstrução do Estado, dos seus meios e suas competências é prioridade. Um terceiro falso paradoxo merece ser esclarecido. A despeito da abundância, nos últimos dez anos as crises de abastecimento foram sempre uma ameaça e, para preveni-las, derivados de petróleo, gás natural e eletricidade registram preços recordes. A alienação dos ativos em nada mitigou a alta, ao contrário, passou a justificá-la: a oferta depende da importação por fornecedores privados.
A ausência do Estado em área estratégica, como a energia, explica a doença holandesa, o mal da abundância e a pobreza de alguns países exportadores de petróleo. No Brasil, de mais a mais, monopólios e oligopólios deixaram de ser regulados, o planejamento foi negligenciado e o consumidor-cidadão paga caro por isso. É tempo de voltar a atenção à administração pública direta e indireta. Do gabinete do ministro aos departamentos, das agências às comissões, das instituições de pesquisa aos laboratórios universitários e das estatais às empresas controladas, tudo terá de ser reposto.
Luís Eduardo Duque Dutra é Professor Adjunto da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de Capital Petróleo: A saga da indústria entre guerras, crises e ciclos, publicado pela Editora Garamond