Opinião
Política pública para o gás natural não pode ser um cabo de guerra
Posição dos diversos interlocutores sobre o tema leva-nos a uma reflexão extremamente preocupante, pois políticas públicas se tornaram um cabo de guerra de interesses pessoais e locais, sem uma visão de longo prazo equilibrada
Participei ativamente, no início da década de 1990, dos debates sobre a inserção do gás natural na matriz energética brasileira, especialmente quando, como membro da direção da Associação dos Engenheiros da Petrobras (AEPET), se discutia a implantação do Gasoduto Brasil-Bolívia. Na ocasião, a inserção do gás natural na matriz era muito incipiente, focada basicamente nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Sob o ponto de vista estratégico, analisávamos os potenciais impactos e riscos geopolíticos ligados à entrada do gás boliviano no Brasil, bem como o estabelecimento de uma dependência em relação a um país sul-americano que, à época, vivia em constante crise institucional.
Ao longo dessas mais de duas décadas o gás natural ganhou grande importância, em especial no início da década de 2000, em função da sua contribuição efetiva na geração elétrica térmica na base, sendo fator decisivo para corrigir os efeitos dos baixos investimentos que levaram ao chamado “apagão” na mesma década. Na época dessa expansão, então Secretário de Energia, da Indústria Naval e do Petróleo no Estado do Rio de Janeiro, pude coordenar a implantação do maior programa de termoelétricas do país, a partir de incentivos fiscais e de uma articulação efetiva junto a investidores e à própria Petrobras, então detentora exclusiva da oferta de gás.
Recentemente, li um artigo em um site boliviano que me deixou impressionado. Com o título “Bolívia debe vencer a Brasil en la Guerra Estratégia del Gás”, o conteúdo destacava que os bolivianos, a partir de um novo cenário de renovação do contrato, se avocaram de algum tipo de “poder”, como se o Brasil ainda tivesse o grau de dependência em relação ao gás importado existente na época da construção do gasoduto Brasil/Bolívia, em total contraste com as reservas descobertas em nosso litoral, especialmente no pré-sal da Bacia de Santos.
Da mesma forma, vemos o Gás Natural Liquefeito importado (GNL) ter um crescimento brutal na matriz brasileira. Não que este seja desimportante como oferta complementar, mas o que chama a atenção são resultados totalmente inesperados desse crescimento, como no caso de um leilão realizado para geração de energia cujo projeto vencedor fica no Pará, à base do GNL importado, ou seja, muito distante geoeletricamente do centro de consumo de carga.
Todo esse cenário recente acontece em paralelo às discussões que ocorrem no país em relação à nova política pública da chamada Lei do Gás, em apreciação no Congresso Nacional. A posição dos diversos interlocutores leva-nos a uma reflexão extremamente preocupante, pois políticas públicas se tornaram um cabo de guerra de interesses pessoais e locais, sem uma visão de longo prazo equilibrada.
Nessa nova Lei do Gás em discussão vimos uma desconsideração e até mesmo uma demonização do princípio constitucional que trata da competência dos Estados na distribuição do gás canalizado através de dutos. Da mesma forma, assistimos grandes consumidores querendo executar o princípio do by-pass, estranhamente até já permitido por agências reguladoras de alguns Estados, como se a atividade de um grande cliente estivesse desconectada de um todo do sistema de distribuição, e como se o processo de inserção do gás natural no Brasil fosse meramente para atender grandes consumidores de geração distribuída por cogeração, industrial, residencial e até de GNV, desconsiderando os médios e pequenos.
A visão da utilização do gás natural na matriz energética brasileira fica, portanto, pontual, e se coloca infelizmente dentro de um sistema de “cabo de guerra”, no qual os múltiplos interesses não chegam a uma visão equilibrada. Da mesma forma, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), uma das grandes invenções da Lei 9478/96, da qual fiz parte, que regulamentou o sistema de abertura do setor de petróleo no Brasil, modificando o Artigo 177 da Constituição Federal, assiste essa situação que pode nos levar a um futuro incerto no setor energético, pois a questão da produção de gás no Brasil virou uma mera decisão de investimentos que cabem a petroleiras, sem uma ação efetiva, concreta e com visão de política de longo prazo, por parte desse mesmo Conselho e dos muitos agentes no país, em especial a ANP.
Interessante observar na matéria do site boliviano que citei acima, sobre negociação entre Brasil e Bolívia, é que, mesmo com as grandes descobertas de gás, conseguimos ainda sermos reféns de uma discussão desse nível, e até de uma eventual dependência de importação de gás da Bolívia, em um volume inferior ao que poderia ser disponibilizado com a produção somente de um Campo da nossa Bacia de Santos, caso já tivéssemos a infraestrutura finalizada para trazer o gás para o continente.
Da mesma forma, o que equilibra tal discussão com os bolivianos não é a produção nacional, e sim a importação de GNL que, mais uma vez, se for considerada como a base principal do insumo futuro do sistema de gás natural e não como atividade complementar, nos levará a curiosa situação de termos gás nacional sendo queimado e, principalmente, reinjetado em nossa costa no momento em que gastamos divisas e ficamos lastreados a uma importação de gás natural, com preços dolarizados do mercado internacional e, por consequência, umbilicalmente ligados à formação dos preços finais no país.
Reforço que a discussão do tema é muito desequilibrada dentro do Projeto de Lei do Gás no Brasil, no qual cada segmento busca meramente o seu interesse e não há o equilíbrio de fato, oriundo de uma ação firme de política pública. Até muitas federações das Indústrias acabam sendo conduzidas não por interesses da Indústria no geral, mas sim por algum grupo de investidores ou segmentos da cadeia que consideram a sua atividade como central, desconsiderando a importância do gás na matriz brasileira em todo o sistema produtivo e até como matéria prima petroquímica.
Para colocar uma pitada ainda mais preocupante nessa discussão, os reservatórios das hidroelétricas, que durante muito tempo foram a base da nossa geração hídrica, estão perdendo sua capacidade de armazenamento multianual, ficando em uma dependência de recomposição anual do tipo “roleta russa”. Neste momento, deveríamos utilizar nossas termoelétricas para gerar na base, recompondo os níveis dos reservatórios e reduzindo tremendamente o nosso risco, que hoje ainda é mitigado, não em função do planejamento efetivo, mas sim de uma recessão econômica induzida por uma pandemia.
Nesse caldo confuso, distante do que se espera para uma política pública, chegamos a um processo deficientemente equilibrado, no qual temos o gás boliviano disputando espaço no mercado nacional com o gás importado via GNL, enquanto reinjetamos grande parte de nossas reservas de gás, no mesmo momento em que nossas hidroelétricas têm seus reservatórios secando. Ou seja, temos todos os ingredientes para ter um colapso futuro brutal.
Existem instituições fortes no setor energético criadas no país. Porém, a EPE, da qual participei da criação como Secretário de Energia e consegui, por meio do então deputado estadual Eduardo Paes, fazer com que fosse sediada no Rio de Janeiro, da mesma maneira que a ONS, que também conseguimos manter sua sede na cidade, por intermédio do também deputado estadual Marcio Fortes, são órgãos que, hoje, parecem estar navegando distantes do necessário debate, o qual também interessa à ANP, Aneel e ao próprio Ministério de Minas e Energia. Todos nesse novo cenário confuso de política pública.
WAGNER VICTER é engenheiro, administrador, ex-Secretário de Estado de Energia, Indústria Naval e do Petróleo e ex-Conselheiro do CNPE