Cadeias de valor e o desafio do carbono invisível
Opinião
Cadeias de valor e o desafio do carbono invisível
Empresas que buscam estabelecer metas alinhadas à ciência e que priorizam informações supplier-based – dados coletados diretamente dos parceiros - medem com mais precisão, identificam pontos críticos e propõem metas de redução mais realistas
O carbono invisível é hoje o grande ponto cego das estratégias de descarbonização corporativa. Invisível porque não se encontra dentro das fronteiras operacionais da empresa, mas espalhado por toda a cadeia de valor - nas matérias-primas adquiridas, no transporte de produtos, no uso e no descarte pelos consumidores. É o carbono que não aparece nos relatórios convencionais, mas sustenta quase tudo o que uma organização faz.
Trata-se das chamadas emissões do Escopo 3, definidas pelo GHG Protocol como as emissões indiretas que ocorrem fora das operações diretas da empresa. Elas se diferenciam das emissões dos Escopos 1 e 2, que abrangem combustão, processos industriais e consumo de eletricidade, porque dependem de dados externos, muitas vezes fora do controle e até do alcance das corporações.
O Escopo 3 abrange 15 categorias distintas, desde bens e serviços adquiridos, transporte e viagens de negócios até o uso e o fim de vida de produtos vendidos. É uma visão ampliada das emissões, que revela o impacto climático das relações comerciais e logísticas que sustentam os negócios.
De acordo com o CDP, o Escopo 3 pode representar mais de 70% das emissões totais de uma empresa e, em alguns setores, como alimentos, energia, transporte, construção e bens de consumo, ultrapassa 90%. Por isso, ele se tornou o principal foco dos compromissos corporativos de neutralidade e o maior desafio técnico da agenda climática empresarial.
Medir o que está além das fronteiras físicas da organização exige dados confiáveis e rastreáveis, algo difícil de obter em cadeias complexas e fragmentadas. A multiplicidade de fornecedores, a diversidade de processos e a falta de padronização na coleta de informações ainda limitam a precisão dos inventários.
O GHG Protocol reconhece essa complexidade e propõe quatro metodologias principais para o cálculo do Escopo 3, cada uma com um nível diferente de confiabilidade.
A primeira é a abordagem baseada em gastos, ou spend-based, que estima as emissões a partir do valor financeiro das compras, multiplicando-o por fatores médios de emissão.
A segunda é a average-data, que utiliza médias setoriais e dados secundários de massa ou volume combinados a fatores de emissão genéricos.
Em seguida vem o método híbrido, que combina dados primários fornecidos por alguns parceiros com médias ou estimativas para os demais elos da cadeia.
E, por fim, o método mais preciso e desejável: o supplier-specific, em que os próprios fornecedores disponibilizam seus inventários e dados de atividade.
Essas quatro metodologias formam uma espécie de escala de maturidade, em que a acurácia cresce conforme os dados se aproximam da origem. Quanto mais diretos e reais forem os dados — ou seja, fornecidos pelos próprios fornecedores —, mais consistente e útil será o inventário.
É por isso que a Science Based Targets initiative (SBTi) recomenda que empresas que buscam estabelecer metas alinhadas à ciência priorizem informações supplier-based. Esse tipo de dado, coletado diretamente dos parceiros, permite medir com mais precisão, identificar pontos críticos e propor metas de redução mais realistas.
A forma como esses dados são coletados faz toda a diferença. Algumas empresas ainda dependem de planilhas e questionários trocados por e-mail, o que fragmenta informações e reduz a qualidade dos resultados. Outras já avançaram para o uso de plataformas digitais de engajamento de fornecedores, muitas vezes no formato white label, ou seja, sistemas personalizados que permitem que cada fornecedor insira diretamente seus dados de consumo, transporte, energia ou produção.
Essa integração não apenas reduz erros e padroniza a entrada de informações, como também cria um canal contínuo de atualização, monitoramento e aprendizado. O resultado é uma base de dados muito mais rica, que eleva a credibilidade dos inventários e viabiliza estratégias concretas de redução e compensação.
Para os fornecedores, participar desse processo significa mais do que atender a uma exigência de reporte: é uma oportunidade de fazer parte ativa da gestão climática corporativa.
O primeiro passo costuma ser o mapeamento das categorias prioritárias — como bens adquiridos, transportes e resíduos — e a adoção de boas práticas de medição de consumo e emissões. À medida que a coleta se expande e se automatiza, o inventário deixa de ser um exercício anual e passa a se tornar uma ferramenta de gestão dinâmica, capaz de orientar decisões de compra, logística e inovação.
O desafio do carbono invisível é tanto técnico quanto cultural. Ele exige colaboração, transparência e corresponsabilidade entre empresas e seus parceiros de negócio. Mas as condições para superá-lo já estão dadas: com metodologias consolidadas, incentivos de mercado e ferramentas digitais cada vez mais acessíveis, o que antes era uma zona cinzenta começa a ganhar nitidez.
Quando dados reais fluem ao longo da cadeia e são transformados em inteligência, o carbono invisível deixa de ser um problema intangível e passa a ser o ponto de partida de uma descarbonização verdadeiramente estratégica.



