Boa Vista, última capital a se conectar ao SIN
Opinião
Boa Vista, última capital a se conectar ao SIN
Um breve histórico do processo de interligação de Roraima ao Sistema Integrado Nacional, benefícios alcançados, expectativas e inquietações decorrentes da energização do linhão recém-construído
Coautora: Maria Conceição de Sant’Ana Barros Escobar*
O Estado de Roraima, com seus 15 municípios, tem uma população de 738.772 habitantes (IBGE) - número mais do que o dobro da população recenseada em 2002 – e exibe um crescimento de demanda por energia elétrica de aproximadamente 11% neste ano, distribuída entre o sistema de Boa Vista e 12 municípios conectados. No dia 16 de setembro teve seu sistema elétrico integrado ao SIN, menos de três semanas antes de completar, dia 5 de outubro, 37 anos como unidade da Federação Brasileira.
A odisseia da Integração
Até 2001 o suprimento elétrico de Boa Vista e demais municípios era assegurado por termelétricas à diesel e uma pequena hidrelétrica. Neste ano, o estado passou a importar energia da Usina de Guri, na Venezuela, complementar à oferta do parque termelétrico e os diversos sistemas isolados a óleo.
A EPE - Empresa de Pesquisa Energética realizou estudos para suporte à tomada de decisão quanto ao suprimento energético ao Estado de Roraima e, em 2010, por meio da Nota Técnica DEE-RE-047/2010-r0 recomendou a interligação de Boa Vista ao SIN, com a implantação da LT 500 kV Lechuga – Equador - Boa Vista, atravessando a Terra Indígena Waimiri Atroari e nove municípios dos estados de Amazonas e Roraima.
Em setembro de 2011, o Leilão Aneel 04/2011, destinado a contratar serviços públicos para a construção, operação e manutenção de instalações de transmissão para Roraima se integrar ao SIN, teve como vencedor do Lote A o Consórcio Boa Vista, formado pela Eletronorte (49%) e Alupar Investimento (51%), que posteriormente constituiu a SPE Transnorte Energia S.A.
Em 25 de janeiro de 2012, foi assinado o Contrato de Concessão 003/2012, que previa a conclusão do empreendimento em 36 meses e, no mesmo ano, foi aberto o processo de licenciamento ambiental junto ao Ibama pela Transnorte, porém somente em 2015 foi emitida a Licença Prévia. Em 2016, a LP foi suspensa em função das dificuldades associadas à travessia da Terra Indígena Waimiri Atroari, demandando atraso no restante do licenciamento e consequentemente na obra.
Porém, com a Resolução nº 1, de 27 de fevereiro de 2019, o Conselho de Defesa Nacional – CDN reconheceu como de interesse da Política de Defesa Nacional a LT Manaus - Boa Vista, considerando-a alternativa energética de cunho estratégico para atendimento ao país.
Devido à instabilidade e elevado número de desligamentos da interconexão com a Venezuela pela LT de 230kV, Santa Elena de Uiarén-Boa Vista, Roraima deixou de importar energia do país vizinho em 2019 e passou a consumir basicamente diesel e a operar a recém revitalizada UHE Jatapú (10 MW) no sul do estado, ano em que a Aneel realizou o Leilão de Geração 001/2019 para suprimento de Boa Vista e cidade conectadas.
Esse leilão resultou na contratação de nove empreendimentos dos 124 considerados aptos a participar do certame, sendo contemplados uma usina a gás natural (126,29MW), uma usina a diesel (42,25MW), um sistema híbrido de biocombustível, solar e armazenamento (56,21MW), um sistema híbrido de biocombustível e biomassa de dendê (17,62 MW), uma usina a biocombustível de dendê (11,49 MW) e quatro empreendimentos à base de cavaco florestal (Acacia Mangium), todas de igual potência (10 MW), totalizando 293,86 MW de potência nominal.
Todas assinaram contratos de 15 anos, exceto a térmica à diesel, cujo horizonte foi de 7 anos. Até 2023, oito empreendimentos entraram em operação. O único que até o momento não entrou em operação foi o sistema híbrido Forte São Joaquim, de 56,21MW, permanecendo em operação parte das térmicas à diesel do antigo sistema.
Em 2020, por meio do Acórdão 1552/2020, o TCU buscou garantir o abastecimento de energia a Roraima e tratou de riscos relacionados à implantação da LT Manaus-Boa Vista, determinando a apresentação de um plano de ação ao Ministério de Minas e Energia (MME). Nesse mesmo ano, a OMS decretou estado de pandemia em relação ao coronavírus, o que dificultou os trabalhos junto às comunidades indígenas e influenciaram num processo de reequilíbrio econômico financeiro do contrato.
Somente em 28 de setembro de 2021 foi emitida a Licença de Instalação (LI), contestada por representantes indígenas, levando a ações judiciais que exigiram o cumprimento de medidas socioambientais antes do início efetivo das obras.
Visando reduzir os custos da Conta de Consumo de Combustível (CCC), o MME autoriza por meio de portaria a retomada da importação de energia da Venezuela, habilitando ao menos oito empresas, limitada pelo ONS em 15 MW.
Resolvidas as questões do licenciamento da LT 500kV Lechuga – Equador - Boa Vista, a obra foi iniciada, com previsão de entrada em operação em janeiro de 2025. No entanto, após superar entraves administrativos e litígios judiciais, a obra foi finalmente concluída. No último 3 de setembro foi emitida a Licença de Operação – LO e no dia 10 do mesmo mês o Presidente da República inaugurou a obra da sala de operação do ONS.
Em 16 de setembro de 2025, às 7h23min (hora de Brasília), o sistema isolado de Roraima interligou-se ao SIN e, a partir de então, Roraima deixou de importar energia do sistema venezuelano.
Resultados imediatos
Como resultados imediatos da interligação ao SIN, destaca-se:
- Mercado livre de energia: Consumidores de alta e média tensão do Grupo A podem migrar para o mercado livre de energia.
- Redução das emissões de gases de efeito estufa: O desligamento de termelétricas a óleo diesel em decorrência da interligação se refletirá diretamente e de forma significativa na redução das emissões de gases de efeito estufa, da ordem de 1 milhão de toneladas de CO2 anuais.
- Redução de encargo setorial: O encargo da CCC sofrerá significativa redução, estimada em R$ 600 milhões por ano.
- Bandeiras tarifárias: As tarifas praticadas em Boa Vista e demais municípios interligados ficarão sujeitos a incidência das bandeiras tarifárias, o que não ocorria na condição de Sistema Isolado.
- Internet de qualidade: O cabo de fibra ótica que acompanha o linhão possibilitará um ganho de velocidade treze vezes maior que o atual serviço disponível no estado.
- Entendimento com as populações indígenas: Foi firmado com as populações indígenas, particularmente a Waimiri-Atroari, o Plano Básico Ambiental - PBA, com investimentos de R$ 133 milhões, para proteção ambiental, implantação de internet nas aldeias, dentre outras ações.
- Importação de Energia da Venezuela: Em princípio, a conexão do sistema de 230kV com a Venezuela não faz parte da operação, carecendo de estudos mais complexos do planejamento da expansão pela EPE, indicando alternativas técnicas, e permitindo estabilizar ou isolar o desempenho elétrico de ambos os sistemas em operação conjunta, conforme o Plano da Operação Elétrica do Médio Prazo do SIN,PAR/PEL 2023, Ciclo 2024-2028.
Expectativas
- Maior segurança e estabilidade energética: O sistema Boa Vista sofria com alta incidência de desligamentos. Espera-se que o mesmo não ocorra no cenário interligado. No dia 14 de outubro houve um corte de 90 MW devido a falha no SIN, em decorrência de um problema no Paraná.
- Exportação de energia elétrica: De acordo com o MME, espera-se que haja o escoamento de 700 MW para o SIN proveniente de futuras hidrelétricas inventariadas em Roraima. Além disso, há expectativa de uma eventual exportação de eletricidade, via Projeto Arco Norte, LT de 1.800 km do Amapá à Roraima a ser construída, passando pelos territórios da Guiana, Suriname e Guiana Francesa.
- Redução tarifária: Alguns acreditam que haverá redução tarifária. É esperar para ver.
- Desenvolvimento socioeconômico: Há expectativa que o fornecimento de energia mais confiável e em maior quantidade crie condições favoráveis para o crescimento econômico do estado, atraindo investimentos e impulsionando o desenvolvimento sustentável da Amazônia.
- Corte no despacho de fontes renováveis: Há a possibilidade de redução forçada da geração de energia de fontes renováveis intermitentes, devido ao curtailment.
- Compensações socioambientais: Espera-se que seja cumprido na íntegra o que consta do Plano Básico Ambiental.
Inquietações
- Limitação do fluxo de energia: O fato da conexão ao SIN ser dependente de uma linha única de transmissão remete às vulnerabilidades sobre estabilidade e segurança, se considerada a possibilidade de blecaute do Sistema Elétrico de Roraima em situações de perda dupla, em qualquer trecho do circuito duplo do tronco em 500kV da Linha Lechuga-Equador-Boa Vista. Nesse sentido o ONS realizou estudos e simulações para elaboração do Plano de Operação, Ciclo 2024-2028, estabelecendo um limite de importação da linha em 55%, demandando um montante de geração térmica local para o pleno atendimento a essa restrição elétrica.
- Usinas hidrelétricas: Sabe-se da dificuldade para construção de hidrelétricas na Amazônia, portanto não é tão certo que estas serão construídas e, assim, tornar o estado de Roraima exportador de eletricidade.
- Exportação de energia: Caso haja geração de eletricidade excedente para exportar, é preciso observar que a tributação na venda de energia se dá no destino e não na origem. Portanto, que ganhos o estado pode ter em ser exportador para o SIN?
- Novos empreendimentos de fontes renováveis: Como mencionado, no Leilão de Geração realizado em 2019 vários empreendimentos, embora tenham participado, não foram contemplados. Portanto, com a interligação, fica a pergunta quanto a um novo leilão em que esses possam concorrer.
- Impacto cultural: Há possibilidade de impacto cultural indesejável com a disponibilidade de internet nas comunidades Waimiri-Atroari, muito embora não se possa avaliar sua magnitude ou forma de mitigá-los de maneira efetiva.
É inconteste os benefícios da interligação de Roraima ao SIN, no entanto, também são pertinentes as razões para as inquietações levantadas. É preciso que os diversos agentes da sociedade se mantenham vigilantes e atuantes pois, como diz um ditado indiano, não se deve esperar por um futuro melhor e sim criá-lo agora com nossas ações no presente.
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*Maria Conceição de Sant’Ana Barros Escobar é engenheira elétrica, com mestrado em Desenvolvimento Regional da Amazônia. Presidiu a Companhia Energética de Roraima - CERR e é doutoranda em Recursos Naturais na UFRR.



