Opinião
A guerra na Ucrânia, seus impactos e lições para o Brasil
Precisamos começar a refletir sobre a nova conjuntura mundial do gás natural. A questão não é só o preço do GNL, mas de garantia da oferta e de segurança energética do país
Os EUA e UE anunciaram, nos últimos dias, um acordo de fornecimento de gás natural liquefeito - GNL que visa reduzir os efeitos da dependência do gás da Rússia nos países membros da UE. Pelo acordo, os EUA fornecerão à UE ao menos 15 bilhões de metros cúbicos adicionais de GNL até o fim do ano e mais 50 bilhões de metros cúbicos até 2030.
Nesse artigo, busco identificar possíveis impactos que o Brasil poderia sofrer com a crise atual e, ao mesmo tempo, analisar que lições podemos tirar desse momento que vivemos e de outras crises passadas.
Antes de mais nada, guardada as devidas proporções da gravidade de uma guerra onde vidas são perdidas, esse momento atual me reporta, no caso do risco da oferta de gás natural e do GNL, a uma crise que o ocorreu na UE no período de 2004 a 2007, quando eu estive a frente dos negócios de um grupo energético multinacional na Itália.
A crise do período acima foi decorrente de um inverno extremo que acometeu boa parte da UE e teve repercussões na oferta de gás. Na ocasião houve um aumento excepcional do consumo de gás e os estoques dos armazenamentos subterrâneos utilizados para modulação do período quente-frio não foram suficientes para atender toda a demanda.
O país teve que acionar seu plano de contingência para garantir o balanço entre a oferta e a demanda de gás natural que definia, em detalhes, as ações que deveriam ser implementadas, passo a passo, em razão dos distintos níveis de criticidade.
Já no início da crise, o plano previa a conversão das térmicas e indústrias bicombustíveis. Na medida que a crise foi se aprofundando, novas medidas foram tomadas, chegando ao ponto de obrigar os consumidores residenciais a reduzirem a temperatura da calefação de suas casas.
As capacidades do terminal de regaseificação de GNL existente no país, não utilizadas pelos detentores dos slots, foram abertas a terceiros visando manter os estoques elevados.
Esse sistema é bem interessante e funciona em períodos normais permitindo ao país otimizar a oferta de gás ao país. Os comercializadores detentores de capacidades no terminal de GNL são obrigados a informar com antecedência se irão ou não utilizar seus slots (existe uma quantidade obrigatória mínima de uso). No caso de não utilização de algum slot, ele é disponibilizado a terceiros interessados.
Todo o anterior comentado nos traz uma lição de que o importante, quando não tratado, pode virar urgente.
Nesse aspecto não podemos deixar de comparar o setor do gás natural com o setor elétrico no país. O setor elétrico tem o Operador Nacional do Sistema (ONS), que acompanha em tempo real a operação do sistema e na formulação de cenários e na tomada de ações em casos de contingência.
No gás natural, a Petrobras sempre desempenhou esse papel, mas nunca chegamos a ter um plano de contingência pré-definido para momentos de crise, o que eleva o risco.
Nesses novos tempos, em que a Petrobras já não opera os gasodutos no país e já não é a única comercializadora/importadora do gás natural, seria muito importante a figura de um Gestor Técnico do Sistema (GTS). Na discussão da Lei do Gás a figura do GTS não foi bem compreendida e não restou bem definida na lei. Poderemos pagar um preço alto no caso de uma crise aqui. Lembro que, no passado, já vivenciamos uma questão geopolítica na Bolívia que poderia ter gerado graves consequências na oferta de gás natural para o Brasil. Não havia um plano de contingência e tivemos que improvisar no momento.
Ficam então, as seguintes perguntas: O que faríamos no caso de uma redução significativa da oferta de GNL, ou mesmo do gás boliviano ao país? Que cenários de crise já foram considerados na atual conjuntura e que planos de contingência temos preparados para uma grave restrição da oferta de gás natural? Quem faria o papel de GTS? Quem seria o Comercializador de Último Recurso (CUR), caso haja falha de entrega de GNL para o sistema brasileiro? Quais Tarifas de Último Recurso (TUR) seriam praticadas?
Creio que ainda não temos, de forma clara, as respostas para essas e outras perguntas. Hoje, por exemplo, na UE, devido à crise, existem casos em que comercializadores optam por pagar multas contratuais e não entregar o GNL ao consumidor final.
Conclui-se, portanto, que o setor do gás natural no Brasil precisa aproveitar esse momento em que vemos que crises muitas vezes nos pegam de surpresa, e buscar estruturar um plano de contingência. Da mesma forma, seria importante voltar a pensar num GTS para coordenar a variedade de agentes do setor hoje que serão ainda maiores com o passar dos anos.
Atualmente, temos um setor mais robusto e uma maior capacidade de regaseificação, mas sustentado em unidades do tipo FSRU que não dispõem de capacidade para estocar grandes volumes de GNL como nas unidades do tipo on shore que poderiam estocar três a quatro vezes mais que as FSRUs, o que seria importante num momento de crise num país que não dispõe de armazenamento subterrâneo como o Brasil.
O Brasil tem uma situação distinta da UE porque tem produção de gás local e está conectado por gasoduto de transporte com a Bolívia. Juntas, essas duas fontes de oferta representam 75% de toda oferta de gás em 2021, ficando o GNL com cerca de 25% do total. No total importamos cerca de 50% do volume total em 2021, enquanto reinjetamos cerca de 50% do gás natural produzido aqui.
A notícia do fornecimento prioritário de GNL dos EUA para a UE deveria acender um sinal de alerta para nossa segurança energética do gás natural.
Quanto à questão do GNL, a mesma precisa ser enfocada do ponto de vista do equilíbrio entre a oferta e a demanda de GNL. Para se produzir GNL é necessário encontrar reservas comercialmente viáveis, é necessário também construir plantas de liquefação que podem chegar a custar USD 5 bilhões. Também se faz necessário construir barcos para transportar o GNL que seus custos superam USD 200 milhões. Enfim, a oferta não se improvisa.
O objetivo da UE é o de aproveitar os excedentes de capacidade de regaseificação e encher seus armazenamentos subterrâneos com urgência para mitigar possíveis efeitos de um eventual corte da produção de gás russo.
Dessa forma, tentarão manter os armazenamentos subterrâneos completos a toda pressa, para o caso de a Rússia deixar de bombear gás. Isso produzirá um rápido e significativo aumento da demanda de GNL que a oferta não conseguirá acompanhar no curto e médio prazos.
Sobre esse conceito entra a geopolítica. Aos EUA interessa garantir o GNL à UE para desestabilizar a Rússia na questão da crise com a Ucrânia. Diante disso, países como Brasil, Argentina e outros que necessitam de GNL irão para o final da fila de prioridades de entrega, mesmo que se disponham a pagar muito caro.
Em Bundestag (a Câmara Baixa do Parlamento Alemão) foi aprovada uma lei que obriga os operadores de armazenamentos subterrâneos de gás natural a encher os reservatórios antes do início de cada inverno, para segurança do abastecimento.
O projeto de lei foi proposto pelo Ministério de Economia e Energia para assegurar que, a partir de agora, os operadores sejam obrigados a ir enchendo os reservatórios passo a passo, de modo que no mês de dezembro estejam num nível mínimo de 90% de sua capacidade.
A Alemanha aspira reduzir de forma significativa a dependência do gás natural e do carvão russo ainda em 2022. Planeja ainda acelerar o desenvolvimento de energias renováveis e do hidrogênio e reduzir o consumo aumentando a eficiência.
Precisamos começar a refletir sobre toda essa nova conjuntura mundial do gás natural. Caberia acelerar a construção de infraestruturas para otimizar o uso do gás natural produzido aqui? Caberia despachar mais as térmicas, sempre que possível, para garantir um nível de segurança estratégico dos reservatórios? Caberia deixar de basear o fornecimento de GNL em compras em regime spot?
A questão agora não é só o preço do GNL. É a garantia da oferta. É a segurança energética do país.
Então, como agora a Europa, que já tem boa capacidade de regaseificação, absorverá grande parte do GNL para recompor rapidamente os armazenamentos subterrâneos, a demanda deve disparar e a oferta não conseguirá acompanhar.
A pergunta final que deixo no ar é: no Brasil, o que temos planejado para a nossa segurança energética quanto ao gás natural?
Bruno Armbrust é sócio fundador da ARM Consultoria, ex-presidente do grupo Naturgy na Itália de 2004 a 2007 e no Brasil de 2007 a 2019. Também foi vice-presidente da Assogas – Associação dos Comercializadores de Gás Natural na Itália, durante o período do processo de liberalização do mercado de gás