Opinião

Contratos com estatais e cláusula penal

Não faz mais sentido, nos tempos atuais, que contratos de serviços ou de fornecimento de materiais prevejam, unilateralmente, cláusula penal em benefício da estatal contratante e nada seja previsto em salvaguarda da empresa contratada.

Por Márcio Ávila

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As empresas estatais do setor de energia contratam inúmeros serviços e materiais através de seus processos licitatórios. Nesses contratos, é extremamente comum a previsão de multa caso a empresa contratada descumpra todo ou parte do objeto contratual (cláusula penal), normalmente aplicada com base em certo percentual do contrato. Assim, por exemplo, se a empresa contratada descumpre parte do contrato, é multada em 5% (cinco por cento) do seu valor total. Se o descumprimento é total, a multa é em 10% (dez por cento) do valor integral. A depender do montante de multa aplicável, pode ser que a contratada venha à bancarrota.

A grande questão é que a empresa estatal, na qualidade de contratante, não está imune a falhas e também pode descumprir o objeto contratual. É o caso de estatal que fica com a posse de toldos e containers para atendimento de parada de manutenção de usina termelétrica além do prazo avençado no contrato locação; que se recusa a pagar pelo conserto de uma embarcação porque o valor do serviço ultrapassa o previsto na Planilha de Preços Unitários do contrato; que demanda as atividades da contratada em percentual abaixo do mínimo previsto no contrato; ou que muda, unilateralmente, o critério de medição de horas trabalhadas do maquinário, em prejuízo da contratada: as hipóteses são as mais diversas. 

Quando o ilícito é praticado pela estatal, o contrato não costuma prever cláusula penal que resguarde a contratada. Significa dizer que, pelo menos sob a ótica do conteúdo do contrato, não há previsão de bilateralidade da cláusula penal.  

Os manuais de procedimentos contratuais das empresas estatais costumam prever que seus instrumentos negociais são regidos pelas normas de direito privado e pela autonomia da vontade. Numa análise superficial, esse seria um fundamento para a ausência de bilateralidade da cláusula penal: vale aquilo que as partes pactuarem. Mas é preciso lembrar que o contrato é assinado em decorrência de processo licitatório e a empresa contratada tem que submeter às condições preestabelecidas pela estatal contratante, não possuindo margem para discuti-las ou alterá-las.

Por essa razão, o contrato decorrente de processo licitatório é de adesão. É uma técnica de contratação estandardizada, cabendo à licitante vencedora simplesmente aderir ao seu conteúdo padrão sem a possibilidade de alterar qualquer uma de suas cláusulas. O aderente não discute nem negocia singularmente os termos e as condições do contrato, mas limita-se a aceitá-los em bloco.

De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, “a cláusula penal inserta em contratos bilaterais, onerosos e comutativos deve voltar-se aos contratantes indistintamente, ainda que redigida apenas em favor de uma das partes” (STJ, REsp nº 1.536.354/DF). Nos contratos de aquisição imobiliária, o STJ pacificou o entendimento de que a cláusula penal não pode beneficiar apenas a construtora ou a incorporadora, mas também o adquirente porque não há margem de negociação e as cláusulas são predispostas e a ele impostas (STJ, Tema nº 971 e REsp nº 1.614.72/DF).

Existem acórdãos de tribunais de justiça locais que garantem a aplicação da bilateralidade da cláusula penal em desfavor da estatal quando não há previsão expressa no contrato. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, entendeu que o fato de o contrato ser de boa qualidade na elaboração, em letras legíveis, não descaracteriza a sua natureza de contrato de adesão, que decorre não da forma como redigido, mas sim da impossibilidade de que a licitante discuta as suas cláusulas (TJRS, AC nº 70081862286).

Em contratos decorrentes de processos licitatórios, tanto o contratante quanto o contratado devem estar submetidos à cláusula penal de maneira equânime. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos (Código Civil, art. 421-A). A interpretação deve ser a mais benéfica à parte que não redigiu o dispositivo do contrato (Código Civil, art. 113, § 1º, inc. IV). No Tribunal de Justiça de Minas Gerais há entendimento de que, nos contratos bilaterais, comutativos e sinalagmáticos, a cláusula penal prevista expressamente apenas em prol de uma das partes deve ser estendida também em benefício da outra, como imperativo lógico da isonomia, boa-fé e do equilíbrio contratual (TJMG, AC nº 1.0024.10.104653-0/001).

Não faz mais sentido, nos tempos atuais, que contratos de serviços ou de fornecimento de materiais prevejam, unilateralmente, cláusula penal em benefício da estatal contratante e nada seja previsto em salvaguarda da empresa contratada. Imagine uma estatal com capital social de bilhões de reais, que conta com uma estrutura de milhares de colaboradores e, do outro lado do contrato, uma empresa de pequeno porte com vinte colaboradores: por óbvio, a estatal tem melhores condições de cumprir todo o emaranhado contratual e regulatório ante a contratada. Inclusive, em grau de solvência, a estatal terá melhor condição de arcar com a multa aplicada, comparativamente com uma microempresa ou empresa de pequeno porte. Não se está aqui defendendo o descumprimento contratual por quaisquer das partes, mas é chegada a hora das relações contratuais serem, no mínimo, formalmente isonômicas.

As empresas estatais do setor de energia contam com robusta estrutura de compliance e não devem ter receio de prever a bilateralidade da cláusula penal em seus contratos decorrentes de processos licitatórios. Aliás, tal previsão engrandece ainda mais a atuação das estatais, que passam a ter que redobrar seus cuidados nas relações contratuais. Afinal, o pau que bate em Chico também bate em Francisco.        

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