
Opinião
Contratos com estatais: retenções e limites da auditoria interna
Auditorias internas devem observar os direitos fundamentais da empresa contratada e parâmetros objetivos, como os expressos pelo CGU em manual. Retenções devem respeitar o fluxo financeiro da atividade empresarial e não podem inviabilizar a atuação da empresa

Na execução de contratos celebrados com empresas estatais, é recorrente a prática de retenção de valores por parte destas, muitas vezes em montantes expressivos, capazes de levar a contratada à bancarrota. Quando a retenção provém de auditoria interna que não conta com a participação da contratada, dúvidas e questionamentos vêm à tona.
A título ilustrativo, imagine-se a hipótese na qual uma empresa tenha pactuado um contrato de prestação de serviços com uma estatal e tenha sofrido retenções no valor de R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais) por supostas falhas na execução do instrumento contratual.
Suponha-se também que a estatal tenha chegado a esse montante por intermédio de um relatório elaborado tão somente por sua auditoria interna, sem qualquer participação ou ingerência da empresa sobre a qual recaiu a supressão do pagamento.
A auditoria em questão fora elaborada por grupo de trabalho composto unicamente pelos colaboradores da estatal, sem qualquer prévia oitiva da empresa que suportou a glosa e, como resultado final de seus trabalhos, apresentou um relatório meramente expositivo, desamparado de qualquer documento ou prova que fundamentasse as conclusões obtidas.
Para justificar a retenção, a auditoria limitou-se a afirmar que foi feito um pagamento equivocado em prol da empresa contratada, sem, contudo, comprovar esta constatação.
A toda evidência, este quadro demonstra que, em se tratando de retenção de valores, logo, de risco de decréscimo patrimonial e de comprometimento da saúde financeira da contratada, a Administração Pública indireta tem o dever de explicar o porquê deste ato, que repercutirá direta e significativamente na esfera jurídica de terceiro, sob pena de nulidade.
Daí se depreende que a auditoria interna não se sustenta sem lastro probatório. Não se pode levar em conta os resultados de um procedimento de controle interno que careçam de documentação comprobatória mínima.
Embora as glosas estejam, na maioria das vezes, contratualmente previstas e, que, em abstrato, sejam plenamente possíveis, isso não representa uma permissão para que, em concreto, as mesmas sejam realizadas sem critérios ou de maneira arbitrária.
Cabe à estatal demonstrar cuidadosamente os fatos que geraram as retenções eventualmente realizadas e, para tanto, fazer uso dos meios de prova cabíveis em cada caso.
Por outro lado, embora a auditoria interna esteja prevista tanto na Constituição Federal (art. 70[1]) como na legislação infraconstitucional (arts. 21 e 24, VI, VIII e IX[2], todos da Lei nº 10.180/2001), fato é que a mesma não pode ser promovida ao desabrigo de outras normas que lhe são imperativas. No exemplo exposto acima, é indispensável que seja oportunizado à empresa contratada, antes de sofrer qualquer tipo de retenção, o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LIV e LV da Constituição Federal), de modo que a ela seja viabilizado participar e influir ativamente nas deliberações que a auditoria vier a fazer. Do contrário, ficariam seriamente comprometidas a isenção e a imparcialidade da auditoria interna, preceitos estes que lhe são inafastáveis.
Neste ponto, é evidente que os poderes da auditoria interna nas hipóteses de retenção de valores contratuais não podem ser amplos e irrestritos, o que pode culminar em um verdadeiro autoritarismo por parte das estatais.
É necessário que a auditoria se submeta não apenas a uma moldura normativa, isto é, que observe os direitos fundamentais da empresa contratada, mas também a parâmetros objetivos de órgãos de correição que lhe são aplicáveis, como a Controladoria Geral da União.
Este órgão, por exemplo, possui um manual de orientações técnicas de atividades onde consta um conteúdo mínimo do que se considera um plano razoável de auditoria interna[3], o que pode ser considerado pelas estatais.
Outro paradigma fundamental a ser respeitado é o da manutenção do fluxo financeiro da atividade empresarial. Isso porque uma retenção de valor contratual não pode inviabilizar a atuação da empresa, seja na execução do contrato, seja no próprio mercado. A própria estatal deve estar atenta a estas regras para não violar os direitos e, em última análise, ameaçar a própria subsistência empresarial das contratadas.
Cabe mencionar que o tema é majoritariamente pacificado nos tribunais, que reconhecem a ilegalidade de auditorias internas feitas de maneira unilateral, sem a participação da parte contrária e que possam lhe causar algum tipo de impacto substancial, seja este de natureza jurídica ou financeira[4].
Nesse sentido, também é imperativo que o Poder Judiciário, uma vez provocado, permaneça coibindo abusos e excessos que firam as garantias constitucionais das empresas contratadas no que atine às retenções de valores decorrentes de auditoria interna de estatais sem sua efetiva participação.
[1] Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.
[2] Art. 21. O Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal compreende as atividades de avaliação do cumprimento das metas previstas no plano plurianual, da execução dos programas de governo e dos orçamentos da União e de avaliação da gestão dos administradores públicos federais, utilizando como instrumentos a auditoria e a fiscalização.
Art. 24. Compete aos órgãos e às unidades do Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal: VI - realizar auditoria sobre a gestão dos recursos públicos federais sob a responsabilidade de órgãos e entidades públicos e privados; VIII - realizar auditorias nos sistemas contábil, financeiro, orçamentário, de pessoal e demais sistemas administrativos e operacionais; IX - avaliar o desempenho da auditoria interna das entidades da administração indireta federal.
[3] Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/auditoria-e-fiscalizacao/arquivos/manual-de-orientacoes-tecnicas-1.pdf, p. 60.
[4] “A referida auditoria representa, portanto, ato unilateral da apelada, sendo que não houve possibilidade de qualquer manifestação ou impugnação da parte contrária, haja vista inexistir nos autos, prova de aceitação comum dos resultados da referida auditoria”. Em: STJ, REsp 1232594, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 01/12/2023.
“Relatório de auditoria produzido de forma unilateral sem força probante”. Em: TJSP, 15ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 1000773-71 .2022.8.26.0482, Rel. Des. Achile Alesina, DJe 06/06/2023.