Opinião
Registro de Ocorrências e multa: limites da boa-fé contratual
Esse artigo trata de um tema muito caro às empresas prestadoras de serviços e fornecedoras de materiais na área de energia porque analisa os limites da boa-fé contratual para a utilização do Relatório de Ocorrências (RO) e a aplicação de multas pela contratante
O RO é um formulário, normalmente mantido no local da prestação de serviço, com registros das ordens de serviço, reclamações, impugnações, anotações de irregularidades e de todas as ocorrências relativas à execução do contrato. É emitido em duas vias, sendo a primeira para uso da contratante e a segunda para uso da contratada, devendo ambas serem assinadas pelo representante da contratada e pela fiscalização da contratante.
A fiscalização da contratante deve registrar no formulário as reclamações, impugnações, irregularidades, falhas e outros registros quanto a fatos que sejam considerados relevantes na execução dos serviços. Mas o que acontece nos casos em que o preenchimento do RO não é contemporâneo ao evento, vindo a ocorrer um ano depois, quando do término do contrato?
Se a contratante tem ciência do ocorrido, pode e deve apresentar o RO assim que possível. A doutrina duty to mitigate the loss significa que o credor da obrigação necessita colaborar com o devedor na tomada das medidas cabíveis para buscar que o dano sofrido se reduza às menores proporções possíveis. Contudo, nos casos de RO emitidos pela contratante em período posterior à vigência do contrato, é possível que a contratada não tenha mais acesso ao local da prestação do serviço e, nessa hipótese, não tenha meios para contestar um RO extemporâneo.
Existem casos em que são emitidas dezenas de ROs de uma vez só, no término do contrato, todos com igual prazo para defesa. É inviável que a contratada desenvolva com efetividade o contraditório e a ampla defesa numa situação como essa.
A consequência de uma defesa deficiente é a provável aplicação de multa em desfavor da contratada, normalmente em percentual aplicado sobre o valor do contrato. Mas a aplicação da referida multa deve ser questionada porque, quando nesses moldes, não contém nenhum cunho corretivo. Ora, se a contratante tem algum tipo de preocupação na correção de conduta indevida por parte da contratada, como a segurança de colaboradores e equipamentos, as multas devem ser consentâneas com os fatos ocorridos.
Outro ponto é que a fundamentação da multa não pode ser genérica. Deve haver uma descrição individualizada dos atos tidos como infracionais ao contrato. Afirmar, por exemplo, que a contratada é responsável pela interrupção das atividades, sem indicar por qual razão teria agido com culpa em alguma circunstância é o mesmo que não dizer nada.
No que concerne ao montante de multa aplicada, ainda que haja previsão de percentual predeterminado sobre o valor do contrato, o contratante deve considerar se o valor é manifestamente excessivo e se não é o caso de reduzi-lo proporcionalmente ao cumprimento da obrigação principal (art. 413 do Código Civil), observando-se os princípios da proporcionalidade e da equidade (STJ, AgInt no AREsp 1471006).
No ambiente corporativo, a contratante não deve estimular suas gerências ao cumprimento de metas de produtividade com base na aplicação de multas em prejuízo das empresas contratadas. Isso é abusivo, imoral e não está de acordo com as mais recentes regras de compliance. O dever entre as partes é de cooperação, não de exploração a qualquer custo.
A maioria dos contratos prevê a retenção mensal de percentual da medição do serviço prestado, a título de garantia para pagamento de verbas trabalhistas. No final do contrato, se a contratada comprovar que adimpliu com todas as obrigações trabalhistas, o valor garantido deve ser liberado. Contudo, o que se tem percebido nos últimos anos é a previsão de cláusula nos contratos de garantia não só para o pagamento de verbas trabalhistas, mas também para quaisquer outros valores.
Naturalmente, a verba retida pertence à contratada, mas tal previsão tão aberta estimula a contratante a fazer uma varredura no final do contrato para verificar se não tem como se ressarcir antecipadamente por qualquer valor que entenda devido. A insegurança jurídica da contratada frente a este proceder da contratante é gigantesca, sobretudo porque, a depender do porte da contratante, pode levar à sua bancarrota.
Sugere-se, portanto, que os seguintes parâmetros sejam estabelecidos para que o RO e as respectivas multas obedeçam aos limites da boa-fé contratual:
a. tanto o RO quanto as multas devem ser consentâneos aos eventos a eles relacionados;
b. deve-se evitar a emissão simultânea de muitos ROs, bem como a emissão concentrada de ROs próximo ou após o término do contrato, de maneira que a empresa contratada tenha tempo hábil para se defender;
c. as multas aplicadas devem conter uma descrição individualizada dos atos tidos como infracionais ao contrato e a indicação do grau de culpa da contratada, se existente;
d. o valor da multa não deve se relacionar apenas ao percentual do contrato, mas também ao grau de cumprimento da obrigação principal e;
e. a retenção mensal de percentual da medição do serviço prestado deve voltar a ser utilizado exclusivamente para o pagamento de verbas trabalhistas e não para arcar com todo e qualquer valor que a contratante entenda devido.
Os parâmetros expostos acima objetivam a manutenção do equilíbrio contratual entre as partes no âmbito da prestação de serviços e fornecimento de materiais na área da energia, princípio este tão caro ao nosso ordenamento jurídico e, conforme visto, à prática empresarial.