Opinião
A ADI sobre o ICMS em contratos de afretamento e apoio marítimo
Para que a pacificação dos conflitos tributários seja efetivamente alcançada, o STF deve evitar o uso de analogia porque todas as figuras jurídicas em debate estão devidamente tipificadas em lei
O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.779, que questiona a incidência do ICMS sobre a prestação de serviços de transporte marítimo interestadual e intermunicipal e também sobre os contratos de afretamento e de navegação de apoio marítimo. As duas últimas incidências serão objeto de análise neste artigo.
Como a ADI foi autuada em 10 de dezembro de 2002, a Suprema Corte começa a analisar o pleito depois de mais de duas décadas. O que está em discussão é a subsunção do afretamento e da navegação de apoio marítimo à hipótese de incidência do ICMS, fundada na prestação do serviço de transporte.
O contrato de afretamento, seja este a casco nu, por tempo ou por viagem, está devidamente tipificado na Lei nº 9.432/97 (respectivamente, incs. I a III do art. 2º) e o mesmo ocorre em relação à navegação de apoio marítimo (inc. VII do art. 2º). Em qualquer uma das modalidades de afretamento, o objeto da obrigação é a disponibilização do navio. Não se confunde, portanto, com o contrato de transporte, onde o foco é a entrega do objeto transportado nas mesmas condições em que foi entregue ao transportador.
É atécnico comparar o afretamento a outros contratos também tipificados em lei, como a locação e o transporte. Na petição inicial da ADI nº 2.779, o tema do afretamento não deveria sequer ter sido posto no mesmo contexto do transporte marítimo. Se o ICMS incide sobre o transporte, mas o afretamento não é transporte, qual a utilidade de trazê-lo para debate no STF? Agora o tema está posto e o STF começa a enfrentá-lo.
O afretamento a casco nu também não equivale à locação, por óbvio. Apesar disso, o próprio STF (AgR no RE nº 503372) já se valeu da Súmula Vinculante nº 31 (“é inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis”) para tratar dessa modalidade de afretamento. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também desenvolve raciocínio semelhante, afirmando que “a jurisprudência desta Corte firmou o entendimento de que não incide ISS sobre contrato de afretamento a casco nu, por caracterizar mera locação de embarcação” (STJ, Segunda Turma, AgRg no REsp nº 1.413.650).
É inegável que os Tribunais Superiores costumam confundir o afretamento com outras figuras jurídicas quando estão diante do julgamento de um tema tributário. Esse proceder, além de impreciso, viola a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), prevista no Decreto nº 4.657/42, cujo art. 4º estabelece que, “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Não existe omissão quanto ao conceito legal de afretamento, razão pela qual não cabe o uso da analogia para a solução de demandas tributárias relacionadas a esse assunto.
Aliás, entendimentos jurisprudenciais atécnicos podem gerar práticas tributárias igualmente impróprias. A legislação do PIS e da Cofins, por exemplo, permite a apuração de crédito decorrente da despesa de aluguel (inc. IV do art. 3º da Lei nº 10.637/2002 e da Lei nº 10.833/2003). Se o STJ, por exemplo, afirma que o afretamento a casco nu é uma locação, será que o contribuinte poderia tomar crédito de PIS e Cofins? A resposta deve ser negativa, mas fato é que a assimilação indevida pela jurisprudência de conceitos jurídicos tipificados em lei aumenta os conflitos sociais, ao invés de pacificá-los.
Até o presente momento, apenas o relator da ADI, ministro Luiz Fux, apresentou seu voto no julgamento, propondo as seguintes teses, na parte que importa para este artigo, a serem eventualmente aprovadas pelos demais ministros do STF:
3) O ICMS não incide sobre a atividade de afretamento a casco nu, definida pelo art. 2º, I da Lei nº 9.432/97;
4) O ICMS incide sobre as atividades de afretamento por tempo, afretamento por viagem e de navegação de apoio marítimo, tal como definidas pelo art. 2º, II, III e VIII da Lei nº 9.432/97 se, e somente se, o afretamento ou a navegação se limitar com exclusividade ao transporte interestadual ou intermunicipal de bens ou de pessoas.
Quanto ao item 3, como o afretamento não é transporte, o ICMS não incide sobre as três modalidades de afretamento (a casco nu, por tempo e por viagem). No que concerne ao item 4, o ministro propõe, para aprovação dos demais ministros, tese de conteúdo antielisivo, ao prever a possibilidade de incidência do ICMS se o afretamento for requalificado para transporte. Isso só pode acontecer se o Fisco entender, no caso concreto, que os elementos do afretamento não estão presentes, mas sim os elementos do transporte.
Tal proposta de tese, no meu entender, não se adequa ao papel do STF no controle abstrato de constitucionalidade. O planejamento tributário abusivo sempre foi combatido pelo Fisco e tem seu fundamento em inúmeras normas infraconstitucionais, restando dispensada, portanto, a atuação da Corte Constitucional neste domínio. Ambas as teses deveriam ser aglutinadas para afirmar que o ICMS não incide sobre o contrato de afretamento e a navegação de apoio marítimo porque são figuras jurídicas devidamente tipificadas em lei e são inconfundíveis com o serviço de transporte.
Após o voto do ministro Luiz Fux, pediu vista dos autos o ministro Alexandre de Moraes. Em suma, espera-se que o STF conclua o julgamento da ADI nº 2.779 com a devida distinção entre o serviço de transporte, objeto de incidência do ICMS, o contrato de afretamento e a navegação de apoio marítimo. Para que a pacificação dos conflitos tributários seja efetivamente alcançada, a Suprema Corte deve evitar o uso da analogia porque todas as figuras jurídicas em debate estão devidamente tipificadas em lei.